segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Conversas íntimas


No caminho entre a casa e o comboio os seus dois “eu” vão dialogando ora em harmonia ora em diálogo mais ríspido. Pudesse e soubesse ele armazenar os dados processados entre os dois enquanto caminha e escreveria um livro, soubesse ele...
A “Sombra” é sempre mais crítica no falar e nas acções do “Eu”, funcionando como a voz da consciência em auto-critica.
Os dois (estará bem dito?) coabitam, nasceram no mesmo momento, no final de uma noite longa de inverno quando o dia receberia os primeiros raios de luz. Cresceram e desenvolveram-se em sintonia. Quando tomaram consciência das coisas da astrologia viveram de mãos dadas pensando enquadrarem-se no signo Capricórnio, não dando muita importância ao facto assumiam-se como tal. No inicio da curva descendente da vida ficaram a saber que tal não era assim, afinal eram do signo de Sagitário, zangaram-se. Agora vivem os dois, quando o “Eu” é Sagitário a “Sombra” é Capricórnio, quando o “Eu” está Capricórnio a “Sombra” procura estar em Sagitário. Imagem dos conflitos internos que protagonizam entre o viver no correr dos dias e, nos momentos de reflexão ou de meditação quando vagueia pelas ruas e campos sem destino.
Ambos têm consciência dos conflitos que vivem, ambos têm consciência que são inseparáveis enquanto durar esta viagem. O passado os moldou, o presente é dos dois, o futuro por enquanto não existe. Às vezes a “Sombra” vai na frente, noutras ocasiões deixa-se ficar para trás mas entram juntos no comboio. 
Se o “Eu” é o emocional a “Sombra” é o racional e vice-versa. Se o “Eu” é o intuitivo a “Sombra” é o factual e vice-versa. Pelo modelo ocidental ou são um ou são o outro e quase nunca os dois. Se o “Eu” é o positivo a “Sombra será o negativo ou o neutro. Os dois “Eu” e “Sombra” são o orgânico.
Quem comanda a escrita, o “Eu” ou a “Sombra”? Não sabe! Mas os dois estão de acordo com o rascunho que ele vai escrevendo no papel.
Um dia ao passar em trabalho na zona de Cascais-Sintra queria lembrar-se do nome do director financeiro daquela empresa de telecomunicações, que um dia em Mafra ajudou a passar aos serviços auxiliares quando estavam no serviço militar e o "Sistema" de então queria todos os jovens aptos para a defesa da soberania em África, mesmo quando tais jovens eram doentes de asma como era o caso. Era difícil sair de Mafra para a consulta externa no Hospital Militar Principal ali para os lados da Estrela em Lisboa, mas ele conseguiu que o amigo saísse embora nunca mais se tivessem visto enquanto militares; ajudou-o e o outro nunca mais o procurou para pelo menos lhe dar um abraço de agradecimento. Agora sentado ao lado do condutor procurava na memória armazenada o nome dele e não o encontrava nos arquivos. Quanto mais se esforçava mais vazia sentia a memória, olhava o azul do mar na estrada do Guincho e enervava-se. Na manhã seguinte ainda era noite quando debaixo do chuveiro o nome que tanto buscava no dia anterior como que saiu das moléculas de água quente que lhe batiam na pele do rosto e se postou ali em frente com todas as letras J R (João Ribeiro). De novo outra questão se lhe colocou. Quem encontrou o J R no arquivo morto da memória, o “Eu” ou a “Sombra”?

Sombra: - Repara,... Já antes de te casares sofrias a acusação de não seres nem fazeres nenhum esforço para seres romântico
Eu: - O meu universo era a luta pela igualdade, pela fraternidade e solidariedade, na minha dialética homem e mulher eram seres iguais que viviam...
Sombra: - Pois... então porque te casaste?
Eu: - Pois... sei lá. Karma, caminho a percorrer? Nada acontece por acaso? Pois... Só sei que não sei. Gostava dela a meu modo amava-a...
Sombra: - O amor é sempre subjectivo
Eu: - Tenho fotos desse tempo que se as publicasse, diriam hoje serem um exemplo do meu ser romantico, mas...
Sombra: - eu sei o que vais dizer, esqueces que estava lá quando a olhavas e guardavas num clik o momento e o sentimento?
Eu: - é... coisas do passado que não constituem saudades, apenas memórias

Seguiam naquela manhã  com este conversar quando chegaram à estação. Gostava de chegar em cima do horário para não ter que esperar muito tempo pelo comboio.

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