Dois
livros neste tempo de verão que me transportaram
para muitos anos lá
atrás,
quando ainda quase menino me levaram para bem longe, sabendo eu ao
que ia e qual a finalidade daquela viagem tão longa, primeiro até
às terras desconhecidas do chamado «fim do mundo» na zona militar
leste de Angola, acabando depois já homenzinho nas terras de barro
vermelho da fronteira norte com o Zaire de Mobotu.
Chegámos
ao Mumbué no dia em que fazia os meus vinte e dois anos, era
quase altura de se festejar no mundo católico o Natal, porque há
outros natais, não existindo contudo Natal na guerra; dia
que nunca esquecerei, que esta guardado nesta memória de um homem
grisalho que teima em recordar as andanças da vida. Vinte
e dois anos de menino e moço, longe
do colo de minha mãe, de meu pai e do abraço de meu irmão,
longe
dos amigos, este
alferes miliciano de uma companhia de caçadores (tropa macaca),
tinha a responsabilidade de manter viva a vida de pelo menos trinta
outros tantos jovens minhotos, transmontanos e angolanos do seu grupo
de combate, custasse o que custasse, por opção não tinha
desertado, logo contra ou contornando sempre que possível as regras
ordenadas pelos superiores hierárquicos, o mais importante era
podermos crescer e regressar todos juntos ao ponto de partida, os de
Angola a Luanda e os do “Puto”
ao colo das nossas mães, mulheres, namoradas,
madrinhas, à terra que nos vi nascer e um dia partir de avião para
outras terras de outros gentios. Objectivo
conseguido, mas quando regressámos a guerra veio connosco e connosco
vai vivendo como se fosse a irmã siamesa que um dia adotamos sem dar
por isso. Numa
guerra não há soldados vencedores, todos perdem.
Com
o vinte e cinco de Abril, as operações de patrulhar o mato
continuaram, mas tudo mudou mesmo
no mato
e num dia escolheram
nomearam-me,
para com uma equipa composta de vários soldados acompanhar as tropas
da Unita que em acordos superiores realizados com os senhores da
guerra, se apresentou no Mumbué para fazerem a sua acção
psicológica nos diversos quimbos da nossa zona de acção militar.
Se antes para um almoço um jantar especial se tinha que ir a um
quimbo, apanhar um porquinho ou um cabrito à força do poder das
armas, passei
ao acompanhar os soldados da Unita a ser prendado com vários
cabritos, tantos que já andava farto de comer ensopado ou cabrito
assado no forno, e quando as altas patentes dos poderes militares nos
ordenaram a mudança para o norte, lá deixei
ficar no Mumbué quase vinte cabeças.
No
norte, nos destacamentos de fronteira, as noites passadas a conversar
com o capelão militar, o seu nome não era Juvêncio como o do livro
A Rebelião, mas porque ainda hoje é pároco amigo, o seu nome e as
nossas conversas ficaram guardadas nas noites de Malele. Mas quem não
tinha duvidas naqueles tempos naquelas terras, onde a tal mão de
Deus parece nunca ter por lá andado. Duvidas
que ele terá contornado resolvido
e
eu adensado.
Dois
livros, duas formas de escrever, mas ambos na minha ideia muito bons.
Se o Nó Cego é o melhor livro sobre a guerra colonial para
todos aqueles que a fizeram em operações no mato onde o sofrimento,
a crueldade e a miopia das altas patentes do reino estão retratadas
a preceito de forma realista,
A Rebelião é
um outro
caminho
que começa passa pela
guerra não
acabando nela,
daqueles
jovens que um dia foram sonhando com um mundo onde a justiça, o bem
e o amor fossem as forças e a razão do viver; do desencanto com os
sofrimentos da guerra, viram no vinte e cinco de Abril a chama que
lhes reacendeu todas as utopias para hoje grisalhos e mais velhos
viverem quase todos na borda do sistema, sentindo-se um estorvo para
os actuais governantes, como se fossem eles próprios os culpados de
um dia terem participado numa guerra que nunca foi deles; mas, como
existe sempre um candeia acesa mesmo na noite mais escura, a utopia
em muitos desses antigos combatentes é a flor utópica que não
morre, a flor que lhes fornece o pólen com que fecundam os seus
sonhos para um Mundo Melhor, mais Fraterno onde a Igualdade não seja
só uma palavra mas também um conceito, uma Sociedade Decente e
Digna sem “sobejos” nem rejeitados, onde os direitos, deveres e
as obrigações não conheçam classes sociais nem estatutos
profissionais, se apliquem a todos por igual e não este faz de conta
que vivemos nos dias de hoje. Um mundo onde o Amor
seja como um dia uma criança na escola primária terá escrito «Amor
é não haver polícias» e outra terá escrito «Amor é um pássaro
verde num campo azul no alto da madrugada» (Vitor
Barroca Moreira, aos nove anos, e Maria Rosa Colaço colheu e
plantou, junto com outras obras de precisão de crianças no
livrinho A Criança e a Vida nos anos 60 do século passado
)