A Vida Na Outra Margem



A VIDA NA OUTRA MARGEM  NA TRAVESSIA DO

 DESERTO



Para que o ódio e o mal?

Para que a guerra e a dor?

Se o que queremos afinal

É paz, justiça e amor.

(Joana Augusta das Neves, avó velhinha de Avis)



Nesse lugar pensei: Quanto deserto

Atravessei para encontrar aquilo

Que morava entre os homens tão perto.”

Sophia de Melo Breyner Andresen









1.

Era uma vez um país que vivia alegre e triste sob os desígnios de um velho professor. Vivia alegre porque não conhecia a Alegria. Acreditavam os seus habitantes que aquela tristeza de vida era o caminho para a salvação vivendo a maioria alegre na santa ignorância. Lamentando a sorte, batendo com a mão no peito, pediam perdão pelos pecados enunciados solenemente pelos fervorosos acólitos do velho professor que os difundiam quer na rádio, quer nos jornais propagandistas, quer nas horas televisivas a preto e branco que o regime lhes facultava graciosamente sempre em nome dos brandos costumes e de públicas virtudes.

Um país, um reino antigo, situado numa ponta do velho continente. À sua frente só viam mar, nas suas costas uns vizinhos de muitas batalhas e escaramuças de onde diziam os antigos que de lá não soprava nem bom vento nem bom casamento. Trabalhavam a terra pobre de sol a sol. Sete dias por semana nas poucas industrias do reino, cujos donos eram famílias protegidas pelo poder do velho professor. Aos discordantes de tanta miséria escondida, de tantas verdades incómodas apagadas a preceito pelo famoso lápis azul da censura, de tanta corrupção oculta, era-lhes dado tratamento a preceito de acordo com as mais negras regras da liberdade. Os direitos humanos eram inexistentes no jardim à beira mar criado pela Natureza governado com mão de ferro pelo velho professor na sua ânsia de poder absoluto. Tudo sempre em nome dos tais brandos costumes e publicas virtudes aceites e difundidas quer pelo clero quer pela comunicação social afeta ao regime do velho professor.

Um país, um reino que a Natureza produziu qual jardim à beira-mar plantado, trabalhando de sol a sol, com descanso dominical para poderem os seus habitantes cumprirem o velho hábito da missa também ela dominical, onde zelosos religiosos do clero difundiam os mistérios da fé, pedindo aos céus a salvação e a proteção do velho professor que habitava num grande palácio na cidade grande do reino. Para que tal pudesse acontecer era necessário que os pobres e miseráveis habitantes do reino acatassem esse desígnio de pobreza acreditando num futuro celestial salvador das suas tristes e pobres almas a trabalhar de sol a sol sete dias por semana. Se assim o fizessem não só a suas almas estariam a caminho do céu como a própria sociedade ocidental ver-se-ia livre das perigosas ideias comunistas e de outras de «poucas vergonhas» que procuravam perverter o mundo.


Um reino onde há muitos anos um visionário criativo de quem não se conhece muito a não ser que era filho e irmão de reis. Reis que a cavalo e de espada em riste defendiam os seus habitantes das investidas dos vizinhos que os queriam deitar ao mar. Um reino onde o criativo visionário cuja imagem vestido sempre de escuro, sentado na ponta mais ponta a sudoeste do velho continente de muitas guerras sanguinárias, olhando o mar sem se importar com o tempo, perdendo-se em sonhos e visões convenceu, o criativo visionário do reino, seu pai e seus irmãos a financiarem a fundo perdido os seus sonhos de que se fossemos mar adentro outras terras outras gentes haveríamos de encontrar. Chamaram-se físicos e matemáticos que naquele tempo tão longe não havia tanta dispersão nos saberes das ciências, contrataram-se mestres navegadores aos mouros. Elaboraram-se planos para o financiamento de tais epopeias visionárias. Obtiveram autorização papal de que os novos mundos a descobrir seriam do reino desde que tais epopeias servissem para a difusão da fé cristã segundo as leituras que os homens fortes do clero já faziam de como deveria ser a vida dos pobres e dos futuros indigentes a descobrir para a obtenção da salvação divina, de acordo com os santos mandamento da igreja cristã apostólica romana sediada em Roma onde ao que se sabe a figura maior à volta do qual foi criada e expandida conquistando poder, nunca por lá passou ou viveu, tendo sido na sua terra distante mal visto e indesejável ao poder dos romanos de então e dos ricos fariseus. Mas a história da civilização tem destas e doutras coisas.

Criaram-se, construiram-se caravelas que mar adentro deram novos mundos ao mundo, iniciando, dando deste modo os primeiros passos para a futura globalização do Planeta. E o reino que era pequeno e pobre ia crescendo por esse mar adentro, por esse mundo fora e tão distante. Para a história ficaram os nomes dos bravos comandantes das muitas expedições. Como é normal nestas coisas nem uma palavra contudo a história relata sobre os desgraçados marinheiros que remavam à força dos seus corpos as caravelas quando os ventos não eram de feição ouvindo por vezes o assobiar do chicote no ar.

Depois, a riqueza que chegava de terras distantes não acalmou a eterna luta entre o bem e mal, entre ricos e pobres, antes trouxe soprando ventos invejosos intrigas e outros males à corte que então reinava sempre de mão dada com o poder que os do clero tinham e impunham como lei divina. Os do clero invejosos, com medo do poder que as novas riquezas vindas de tão gloriosas epopeias alimentando outros gentios de outras praticas religiosas que não as suas foram de intriga em intriga junto da nobreza reinante até conseguirem criar o Santo Ofício para o exercício da Inquisição tudo sempre em nome da salvação divina, em nome do seu Deus misericordioso. Clero e nobreza unidos pelos mesmos interesses que o medo alimentava, queimaram vivos inocentes, opositores e adversários, em fogueiras publicas denominadas «Autos de Fé» para gáudio e clímax da população que a eles assistiam alienadas pelas palavras de um clero retrógrado e invejoso. O reino com tanto ódio, com tantas mortes, com tanta injustiça, com tantas desgraças, assistiu às fugas para outros países daqueles que perfilhavam outros credos religiosos, outras ideias e onde os assassinos do Santo Ofício não tinham poder. Perdeu o reino fulgor económico, saberes das ciências, acabando anos mais tarde por se entregar de mão beijada aos nobres vizinhos do outro lado da terra, que sempre os quiseram empurrar para o mar, vizinhos de onde se dizia que de lá não vinha nem bom vento nem bom casamento.

Nem mesmo, quando passados sessenta anos uma parte da nobreza patriótica descontente com o rumo que o país levava sob as ordens e interesses da nobreza vizinha, revoltados com a submissão que reinava, pegando de novo em armas e num golpe de mão certeiro no tempo, restauraram de novo a soberania do pobre e glorioso reino situado na ponta sudoeste do velho continente, o reino ganhou voltou a ser independente mas o antigo fulgor não conseguiu mais do que marcar passo durante muitos séculos com raras excepções que coincidiram sempre com a perda de poder por parte do clero.

E, foi nesse marcar passo às vezes de marchar em frente e outras de marcha atrás com a corte do rei a fugir para Terras de Vera Cruz mas, os que cá ficaram no reino pegando em armas comandados por um nobre inglês fizeram frente aos meninos de Napoleão que nos queriam conquistar para depois nos retalharem por amigos. Por três vezes nos invadiram e por três vezes levantaram um pontapé no cu regressando à sua terra sujos, rotos e esfomeados. E ainda o reino mal respirava depois de tanta labuta gloriosa contra os invasores franceses auxiliados por tropas dos reinos de Espanha quando se chega à guerra civil entre os irmãos, um liberal e outro absolutista ambos reclamando o trono. No final da guerra civil a vantagem foi do rei liberal que farto das intrigas e com saudades da vida que levava longe do reino se mandou de vez para terras de Vera Cruz proclamando-se Imperador daquelas terras distantes. Ficou o reino entregue a uma nobreza a cada dia mais fraca, medrosa e sem ideias para comandar os destinos do velho reino que ia assistindo à ocupação das suas antigas possessões por outros reinos do velho continente. Domínios que um dia lá atrás os bravos marinheiros navegando nas profundezas do mar distante tinham descoberto e conquistado passaram para o domínio de outros povos com o reino sem força nem fulgor para por fim a essa sangria.

Anos mais à frente no tempo, os homens do povo e de alguma nobreza de fidalgos insolventes, descontentes, perfilhando ideias liberais e republicanas mataram os reis e acabando com algumas das mordomias dos monárquicos instauraram a Republica no início do século vinte . Seguiram-se anos de muitas lutas entre monárquicos, republicanos liberais e anarquistas que com tantos modelos para a governação trouxeram o descontentamento popular agravado pela participação do reino na primeira grande guerra mundial. Perante a situação de tantas discussões e golpes contínuos entre as diversas formações políticas de então, mais uma vez um grupo de militares marcharam num tal 28 de Maio sobre a capital para por ordem no reino. Necessitavam contudo de alguém que pudesse por as contas publicas em ordem já que as mesmas estavam depauperadas num real calote sem fundo. Foi nessa busca de encontrar o homem certo que por interpostas informações descobriram o tal professor de finanças públicas entre livros e beatas na cidade dos doutores. O professor aceitou sem pestanejar impondo as suas condições. Esperto e astuto com ar de beato o velho professor, ao chegar à cidade grande observando as velhas contradições fratricidas entre republicanos foi tratando da vidinha; de reforma em reforma até chegar à sua Constituição da Republica, qual bíblia do regime, por forma a que com a bênção do clero amigo chegasse a ser dono e senhor do reino num voto de castidade e pobreza que depressa ganhou fama. Estavam criadas as condições para o velho professor instituir na nação um regime anacrónico e repressivo de contradições onde um condicionamento industrial foi a forma económica de manter privilégios a uma dúzia de famílias ricas que ajudavam o regime explorando e reprimindo a força de trabalho que existia nos campos, nas fábricas e nos serviços. Repressão auxiliada e exercida por uma força política de informadores bufos criada com o objectivo de manter a qualquer custo os velhos brandos costumes e publicas virtudes do regime, numa santa união de interesses solidários entre o velho professor e o velho cardeal do clero que de mãos levantadas aos céus defendiam e proclamavam ser esse o caminho para a salvação da alma da raça lusitana e do mundo ocidental no slogan «Deus, Pátria e Família».


Esperto, astuto e manhoso de dois bicos o velho professor ao evitar que o reino entrasse na segunda grande guerra mundial, obteve as graças dos cidadãos que por ele aclamavam enchendo praças e dando vivas. O clero sempre pronto a ajudar o velho professor controlava o evoluir das mentalidades, quer com as missas dominicais, quer com as festas e romarias de fé religiosa obediente e submissa à cúria que em Roma continuava a luta intransigente contra todo o progresso cientifico e social que pudesse beliscar ou por em causa as suas tradições feitas verdades absolutas, que pudessem por em causa as suas riquezas, as sua enormes mordomias sociais.


Os que no reino se revoltavam contra esse estado de coisas onde a pobreza era rainha e rei, que sonhavam com um outro modo de vida, com outras condições económicas e sociais, com novos horizontes, viviam controlados até ao ínfimo por um exercito de bufos, de legionários e de policias políticos, sendo que os mais expostos na luta pela Liberdade contra o regime ditatorial eram enviados para as prisões do regime onde alguns apodreceram.

Os anos passavam e o país continuava pobre em todos os domínios vivendo outra noite prolongada e escura onde até o Sol parecia não trazer a tão desejada luz da liberdade, da igualdade e da fraternidade, resignando-se à sua sorte, curvando-se perante os senhores doutores, perante os meninos descendentes da fidalguia abstencionista e insolvente, que continuava a viver como senhores feudais sobreviventes ao evoluir da história.

O velho professor e a brigada de reumático pensante que vivia curvando-se à sua volta e lhe faziam a corte, sofrem um primeiro rombo sério na estrutura montada e criada com mão de ferro pelos seus serviçais bufos, legionários, futuros pides e toda a estrutura clerical que o amigo cardeal tinha ordenado e colocado por todos os lugares do reino, quando no final do ano de mil novecentos e sessenta e um as tropas indianas invadem os territórios existentes sob a administração colonial portuguesa, obrigando, levando as poucas tropas portuguesas ali sediadas a renderem-se face à impossibilidade de tentarem qualquer acção de retaliação, quer pelo número de homens combatentes disponíveis nos territórios em causa, quer pelo armamento em confronto. Possesso e enraivecido por os comandos militares e os seus homens subordinados não terem morrido em combate, demitiu e perseguiu os comandos militares que lá exerciam a sua comissão de serviço expulsando-os do exército. Goa, Damão e Diu foi o começo do fim de um império colonial que nunca existiu de verdade. Apenas na mente perversa do velho professor e seus fiéis seguidores o império era uma realidade.

Não refeitos da perda das antigas colónias no oceano Indico já o velho professor e o seu regime se debatiam com um problema bem mais grave. A insurreição armada existente no que restava das antigas possessões, a joia da Nação que era Angola. Apertava internamente o regime o controlo sobre os seus oposicionistas não olhando a meios para os castigar e eliminar. Era urgente e imperioso salvar o reino da perdição, garantindo custasse o que custasse o território de Angola. «Para Angola e em força» era a ordem o desígnio mandado, já que os inimigos quer do velho professor quer do Deus católico apostólico romano, andavam subvertendo pela noite escura difundindo e anunciando que para lá do horizonte era possível sonhar com outro modo de vida, ter uma vida mais digna do que a então conhecida miséria existente no reino, qual jardim à beira mar que a Natureza foi criando ao longo dos séculos e os homens iam destruindo e aniquilando. O regime mobilizou-se nesse ano de sessenta e um e seguintes. No cais da capital do reino era ver os paquetes fretados encherem-se de soldados perante a multidão familiar que os chorava, despedindo-se cabisbaixos a caminho da guerra nas terras desconhecidas, férteis e ricas angolanas. Dois anos era o tempo que o regime definiu como o tempo certo para cada militar por lá permanecer combatendo os inimigos do regime dos bons costumes e publicas virtudes. Orgulhosamente sós na comunidade internacional o regime multiplicava-se em manifestações de apoio ao velho professor que da sua janela do palácio na cidade grande incitava à defesa de um reino uno e indivisível do Minho até Timor.

A guerra de guerrilha dos movimentos que lutavam pela independência em Angola começava a arrastar-se sempre com a vitória à vista mas nunca o fim da mesma. Eis que rebenta na pequena colónia da Guiné em sessenta e três nova frente de combate pela independência do território e das ilhas de Cabo Verde. Novas mobilizações de mais mancebos. Novos discursos patrióticos a preto e branco acusando os inimigos externos de quererem aniquilar a nossa sociedade de brandos costumes e publicas virtudes tão temente ao Deus católico misericordioso que no nosso passado glorioso nos deu a glória de darmos novos mundos ao mundo… levando bem longe a palavra do Senhor misericordioso.

Chega o ano de sessenta e quatro e nova frente de batalha se abre lá no distante oceano Indico onde tínhamos perdido os territórios ocupados pelo exército indiano mas, agora na costa ocidental onde tínhamos a colónia de Moçambique. Mais mancebos mobilizados. Mais barcos carregados de imberbes soldados para as frentes de guerra numa mata, num clima totalmente desconhecido aos tristes mancebos do reino. Como os barcos não chegavam para as encomendas e as necessidades nas frentes de batalha eram muitas, passou-se também a viajar de avião pelos céus do mar. Transporte mais rápido e eficiente face às necessidades que as frentes de guerrilha impunham ao reino.

Os mortos e os feridos graves que vão ocorrendo são silenciados pelo famoso lápis azul. Oferecem-se medalhas de coragem e valentia a pais, mães, esposas viúvas e filhos órfãos pelos que morreram em combate sem nunca se nomearem o número de baixas que sofríamos. E as guerras que os inimigos do reino nos lançaram estava quase sempre ganhas nos discursos quer do velho professor quer da corte que vivia anafada à sua volta. Só o fim da guerra nunca mais chegava, obrigando sempre a novas e mais mobilizações não só de jovens soldados como até de outros oficiais milicianos que não tinham sido mobilizados aquando do serviço militar obrigatório normal. O regime estrebuchava com tantas dificuldades mas fazendo das tripas coração apertava internamente a repressão sobre os seus opositores. Na frente exterior continuava orgulhosamente sós, exceptuando os acordos que ia conseguindo alcançar com o governo racista da África do Sul.

Em sessenta e oito quando passava férias num forte bem guardado de olheiros estranhos ou perigosos na zona chique do Estoril, o velho e tirano professor sofre um «treco» e cai da sua majestosa cadeira ficando incapacitado. De imediato os do governo e seus fiéis seguidores escolhem um outro professor. Só que o novo professor não era de finanças publicas mas sim de direito administrativo. Tentou de forma cínica o novo professor adaptar o país à realidade que corria mundo fora. Convocou eleições como a querer dar o ar de que era diferente do seu antecessor. Mas a brigada do reumático que viviam pomposamente nos corredores do poder e tinha a confiança da polícia política recauchutada pelo novo professor com o nome “pide – polícia internacional e de defesa do estado”, não permitiu que as mesmas eleições fossem livres, mexendo todos os cordéis para que as oposições saíssem mais uma vez totalmente derrotadas. Contudo, o velho novo professor não agradava nem aos mais ortodoxos do regime, nem aos liberais da situação nem às oposições políticas. Desfazia-se o novo velho professor em aulas familiares a preto e branco designadas por «conversas em família» enaltecendo as obras, o espírito cristão e evangélico do regime face aos desígnios de satanás que eram as oposições externas e internas, até porque as vitórias dos valentes soldados da pátria nas frentes de combate aos inimigos estava a chegar ao fim. Só que o fim não tinha data anunciada e passada mais de uma década do seu início ela continuava sem solução militar à vista.

Andava o reino nesta guerra lá fora, longe, mais longe que o velho caminho para S. Tomé, desgastando-se internamente com intrigas palacianas, cada vez mais fechado, mais ao sabor de uma brigada de reumático esclerosada apoiantes fieis do regime que nem deram conta dos movimentos que jovens militares de carreira iam fazendo. A guerra nas frentes de batalha estava ganha diziam os da situação. Contudo na frente de batalha dia a dia as coisas complicavam-se sem solução militar à vista, com os militares de carreira a abrirem os olhos para o sofrimento de todos. Com as dificuldades que há muito se arrastavam no regime, os novos oficiais de carreira militar provinham muitos deles de famílias pobres e remediadas sem o tal sangue azul ou outro sinal de «pedigree» de outrora, o que lhes permitia não só tomar conhecimento assim como conviver com alguns dos seus oficiais subalternos milicianos que cumprindo o serviço militar eram contra a guerra e contra o anacronismo de uma ditadura que não deixava o país respirar.

Chegou o regime ao fim após treze anos de guerra em terras de África, e quarenta e oito anos de ditadura dos velhos professores quando um grupo de militares de carreira apoiado por oficiais e milicianos , sargentos e praças gritou aos seus superiores: - Alto e paira o baile que isto é uma revolução!

O povo assim que soube e ouviu esse grito de Liberdade saiu em peso à rua cantando e chorando de felicidade. O fim da ditadura estava à vista. O horizonte estava logo ali ao virar da esquina ao quase alcance da mão. Nas frentes de batalha as armas quase que se calaram de imediato aguardando o tão desejado regresso.


Os barões e outros homens do regime amedrontaram-se pela fuga dos seus dois lideres, o novo velho professor de direito administrativo e o mais velho corta-fitas retorcido que presidia ao reino do antigo regime. Cagados de medo ao tomarem conhecimento das ruas inundadas pelo povo em festa, de imediato na sua grande maioria, recorreram à recauchutagem dos seus ideários políticos. No fundo das adegas em tonéis de bom carvalho francês guardaram os seus ideais, os seus “chicotes” e outros símbolos do poder então moribundo pelo povo em festa. Pagaram a aventureiros para levarem para o exterior, Suíça de preferência, as suas barras de ouro particular. Alistaram-se em novos e velhos partidos políticos que lhes deram guarida anos a fio dos percalços de uma breve revolução que começou num dia 25 primaveril para terminar pouco mais de um ano depois num outro 25 invernoso.

Quando mais tarde reposta que estava a ordem democrática e, de ainda alguns bons costumes resistentes pelo longo caminho antes percorrido nas mentes do povo, um outro professor de finanças públicas em clima de rodagem do seu novo carro chegou ao poder, deitaram-se foguetes nos antigos palacetes, deram-se vivas e ferriás, comeu-se ricamente e bebeu-se do bom vinho e melhor whisky. Havia de novo homem de finanças publicas com cadastro e curriculum de confiança para por o reino na ordem então perdida naquele dia de primavera mas que nunca fez esquecer o tempo sem tempo que reinou até aquele funesto dia primaveril, que para muitos deles tinha sido o início de um navegar em águas turbulentas, nada condizentes com os seus pergaminhos de outrora. Beberam-se de novo os ideais guardados nos velhos toneis de bom carvalho francês.

Dez anos de reinado do novo velho ou do velho novo professor de finanças publicas que alguns barões mais saudosistas acharam perdidos. Viveram, sonharam com a esperança de que o novo professor tivesse a esperteza e a subtileza do velho professor de finanças publicas do passado, achando-se no final enganados. Desiludidos viram chegar aos corredores do poder novos barões de famílias sem o seu passado histórico e muito menos curriculum de serviços prestados ao velho regime. Novos barões nascidos sem a qualidade do seu sangue de muitos anos habituados a mandar, a usar o chicote quando era necessário ou a mandar nos soldados da guarda para reporem a sua ordem quando se justificava segundo os bons costumes e as publicas virtudes que o anterior regime sempre lhes ensinou protegendo-os. Viam agora os corredores do poder ser ocupados por representantes dos novos-ricos à custa das grandes obras de betão, das novas formas de exercer a actividade de intermediários no comércio. Desiludidos, agastados mas não totalmente descontentes com o novo velho ou velho novo professor de finanças publicas continuavam a sonhar com o regresso da antiga ordem social baseada na sua “Constituição de 1933” que esta nova Constituição do Reino após a «abrilada» era coisa para comunistas e socialistas darem cabo dos bons costumes e publicas virtudes sobreviventes e que tanta falta faziam à Nação na sua opinião temente.

Contudo, não viviam totalmente descontentes com o novo velho ou velho novo professor de finanças publicas porque rios de dinheiros chegavam de Bruxelas assim como da reposição da propriedade privada que entretanto tinha sido nacionalizada após a fuga do homem do monóculo na sua segunda tentativa de alterar o rumo da história para repor os antigos brandos costumes e publicas virtudes da Constituição de 1933, numa nova linguagem mais soft e moderna na sua aplicação ao tempos da nova Republica. Tanta esperança depositaram naquele homem de monóculo patriota até dizer... e, afinal ao sentir o fogo no rabo tratou de se pirar deixando os seus amigos órfãos, tristes, desiludidos com aquele que era tido como um grande estratega e militar para salvar o país dos desmandos que estavam a ocorrer. Restava-lhes o novo velho ou velho novo professor de finanças publicas para a velha ordem ser restabelecida segundo as tradições das famílias mais antigas, influentes e tementes.

Desiludidos mas não totalmente descontentes porque o novo velho ou velho novo professor estava a ser bondoso com as suas contas bancárias bem reabastecidas pelos tais rios de dinheiro europeus que por cá desaguavam. Fecharam-se fábricas. Abandonaram-se campos. Arrancaram-se oliveiras e alguma vinha. Abateram-se cabeças de gado. O mesmo barco de pesca foi abatido mais do que uma vez. Tudo «A Bem da Nação», pensavam eles, invadindo as cidades as vilas e aldeias do reino com os novos jeeps, com bons carros alemães de muitos cavalos. Tudo isto enquanto a maioria ou minoria silenciosa do restante reino duvidando dos benefícios que os rios de dinheiro pudessem trazer aos mais necessitados recordavam desiludidos o final da festa naquele dia invernoso lá atrás no tempo.

Entretanto os novos poderes da ordem democrática em alternância governativa que se seguiram ao reinado do novo velho ou velho novo professor de finanças publicas de má memória democrática, baixam-se, curvam-se a medo perante o poder do capital apátrida e sem moral. Curvando-se estendendo a passadeira davam as boas vindas às antigas famílias que saíram do reino com medo do povo em festa. Antigos marqueses e barões do antigo regime dos velhos professores regressaram para reaverem o seu antigo e expropriado património, para refazerem as suas contas bancárias agora mais seguras que nunca pela facilidade com que transferem o dinheiro para offshores seguros no exterior. Tudo sempre «A Bem da Nação».

No fundo das adegas os velhos tonéis do bom carvalho francês onde se mantinham os ideários, as tradições de família, bem guardados, viam chegar de novo a luz do dia para serem de novo semeados e cultivados. Serenamente os seus proprietários e as novas famílias enriquecidas pelos novos negócios do betão e do comercio vão instalando nos corredores do novo poder democrático, onde a «cunha» e a «subserviência» voltou a ser à imagem do antigamente o caminho mais fácil para os seus filhos, netos, enteados e afilhados, os quais voltam a usar o peso dos antigos títulos familiares nos corredores de acesso poder publico e empresarial privado. Vão ocupando lugares importantes no fraco tecido empresarial do reino quase todo ele privatizado por políticos, também eles descendentes de velhos barões da social-democracia que de medo em medo ora se curvam aos capitalistas ora se adaptam aos novos tempos do neoliberalismo capitalista mais selvagem, empregando perante a Nação palavras submissas, redondas sem grandes saídas que não seja o cumprirmos penosamente com o decidido por eles lá longe fora do reino na capital de Bruxelas.


Foi neste reino que nasceu num dia lá longe à sessenta e nove anos, num pequeno quarto na cidade grande. Aqui cresceu, estudou, trabalhou e vai vivendo porque deste reino fez a sua Pátria à sua maneira é certo e, na qual acabará um dia o seu caminhar quando a água secar no seu corpo e o espírito seguir o seu caminho noutra dimensão que não esta onde nasceu, cresceu, estudou e trabalhou.



2.

A vida é uma corrida de fundo. Nasceram aqueles dois filhos no mesmo ano num tempo lá longe com os pais a viverem num pequeno quarto alugado na cidade que crescia. Quando ele nasceu a sua mãe não teve leite. A única teta que conheceu nesse tempo foi a do biberon.

Seus pais tinham nascido os dois também eles no mesmo ano da década de vinte do século passado, bem longe da cidade capital e do mar, num interior raiano pobre de vida dura junto à fronteira com a Extremadura espanhola. A mãe primeira filha de um casal onde o pai era Guarda Fiscal nasceu na Zebreira mas logo se mudaram para Salvaterra do Extremo onde nasceram os seus outros dois irmãos e onde ela frequentou a escola primária concluindo a quarta classe. Já o seu pai o terceiro dos quatro irmãos nasceu e fez a quarta classe da escola primária em Segura. As mães, suas avós, trabalhavam cuidando da casa e dos filhos mas ambas tinham feito a escola primária do seu tempo num tempo em que muitas das raparigas não iam à escola começando ainda pequeninas a ajudar nas lides caseiras, a trabalhar a dureza da vida no campo ou a servirem em casas de gente mais abastada. Seu pai assim como os irmãos, seus tios, foram mandados a estudar para lá da escola primária. Calhou ao seu pai não ter sido mandado para o Liceu em Castelo Branco como os seus outros irmãos mas sim para o Seminário. Ao olhar os enormes portões do mesmo resolveu voltar para casa em Segura. O pai ao vê-lo voltar disse-lhe: - Ai voltaste, não quiseste lá ficar, vais guardar as cabras. Assim começou a sua vida de trabalho no campo aos dez anos onde cresceu e se fez respeitar por todos os trabalhadores que com ele trabalhavam, ao mesmo tempo que nunca se entendeu com o modo como o pai, seu avô, levava a vida e a casa agrícola. Seu avô foi um legionário fervoroso salazarista que gostava mais de andar pelas putas e hotéis em Castelo Branco do que cuidar dos negócios da casa agrícola.


Só conheceu a sua avó materna. A avó paterna tinha falecido ainda nova quando começou a segunda guerra mundial e o medicamento alemão que mantinha o seu coração a funcionar deixou de existir no mercado sem que tivessem encontrado outro medicamento alternativo para que o pobre coração pudesse continuar vivo.

O seu avô materno da Zebreira foi durante anos o Regedor da terra. Procura saber o que era e representava a figura do Regedor mas de tudo o que vai lendo sobre essa figura administrativa do Estado Novo não se enquadra na sua memória com a figura que conheceu do seu avô pois não se recorda de nenhuma das facetas autoritárias que vê e lê descritas como poderes do Regedor. O Chico Capelo, assim era conhecido o seu avô, durante anos Regedor na Zebreira, era um homem azedo e implicativo, sempre a fumar o seu Kentucky, era um «chicha azeda» que ao segundo copo de três de vinho branco já trocava as pernas com a ruindade a tomar conta de si.

Já ao avô paterno Luís “Mouco, conheceu-lhe as ideias autoritárias de mandante, quando o mesmo permanecia três meses na casa de seus pais, que era o tempo que cada um dos filhos tinha para tomar conta de seu avô.

Aquando da morte de sua avó paterna foi decretada a insolvência e o seu pai e o irmão, seu tio Chico, os dois que trabalhavam a terra viram-se forçados a procurarem outra vida acabando por ingressarem os dois na Guarda Fiscal.

Seu pai habituado a mandar na casa agrícola não se contentava em ser um simples praça ambicionando subir na hierarquia para-militar da organização. Passava as horas de folga estudar pelos velhos livros que ele ainda encontrou alguns lá por casa, na esperança de poder ser promovido. Teimoso, ano sim ano sim, apresentava-se aos concursos que a Guarda Fiscal realizava. Acabava as provas sempre confiante num bom resultado que lhe permitisse a promoção e uma vida um pouco melhor do que aquela que tinha. Com a publicação das pautas oficiais la vinha a desilusão com o seu nome a aparecer em lugar não elegível. No ano seguinte lá estava ele a realizar novas provas.

Andava o pai nesta vida já eles os dois andava na Escola Primária pública dos Olivais a “Escola do Sobe e Desce” quase a chegar a Moscavide.

Embora nascessem no mesmo ano ele era o mais novo, porque o seu irmão veio ao mundo naquele quarto do número vinte e cinco da Rua da Centieira logo no início do ano em Janeiro e ele acabou por chegar ao mundo naquele mesmo quarto em Dezembro quase no final do ano, uns dias antes da celebração do Natal. Por isso ele andava na escola um ano atrás do seu irmão. Ao completarem, o irmão a terceira classe e ele a segunda classe, seu pai por força de mais uma vez se ter apresentado a concurso foi promovido a segundo cabo e colocado em Porto Novo no Vimeiro.

Nesse tempo, final da década de cinquenta do século passado o Vimeiro ficava muito longe de Torres Vedras para depois de completarem a Escola Primária os seus rapazes poderem ir estudar em Torres Vedras. Nesse tempo não havia transportes públicos diários entre Torres e o Vimeiro que permitissem os filhos poderem estudar. Falando com o Tenente responsável da Companhia sobre o assunto dos estudos dos seus rapazes, teve a sorte de existir uma vaga no Posto do Baleal e assim a família mudou-se de armas e bagagens para Ferrel, onde os filhos acabaram a Escola Primária e realizaram o exame de aptidão à Escola Industrial e Comercial de Peniche. Ferrel ficava por estrada a cerca de oito quilómetros da escola em Peniche. Não havendo também transporte publico que proporcionasse a ida e vinda da escola, as alternativas eram a bicicleta ou o caminhar a pé de Ferrel ao Baleal e dali até Peniche de Cima pela areia da praia.

Aprenderam os dois irmãos a andarem de bicicleta, para se poderem fazer ao caminho. Ele tinha nove anos quando começou a sua aventura diária, às vezes sozinho outras quando os horários eram coincidentes na companhia do irmão.

Quando o irmão andava no primeiro ano do curso Geral do Comércio e ele no segundo ano do ciclo preparatório, a família mudou-se de Ferrel para o Lugar da Estrada, porque o seu pai foi colocado no Posto da Consolação procurando amenizar com a mudança de ares as suas crises asmáticas. Nesse ano o seu irmão reprovou e passaram os dois irmãos a andarem no mesmo ano com os mesmos horários. Andaram juntos até completarem o terceiro ano Geral do Comércio que equivalia ao quinto ano dos Liceus ou ao nono ano actual. Nesse terceiro ano a professora de Contabilidade Geral e Economia Política no final do primeiro período fartou-se das imposições que a directora Rolanda (salazarista de sete costados e meio) exercia e abandonou a escola. Chegou para a substituir um jovem pouco mais velho que eles que pouco tempo antes tinha acabado o curso de Contabilista em Lisboa. Foi esse professor jovem com as suas histórias e modo de ensinar a contabilidade lhes deu não apenas aulas mas deu-lhes lições com o seu jeito de ensinar, contribuindo para a mudança de rumo no futuro que os seus pais tinham sonhado para eles prosseguirem os estudos. Enamorados pelas histórias e pela contabilidade contadas e ensinadas pelo jovem professor pediram aos pais para em vez de os mandarem estudar no Magistério Primário os deixassem antes ir para o Instituto Comercial em Lisboa.

Os pais que desconheciam de todo o que era esse Instituto perguntaram ao primo António que era licenciado pelo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, o que era aquela escola que os filhos lhes estavam pedindo. Por sorte, a prima Irene esposa do primo António, tinha feito o Instituto Comercial antes de também se licenciar no antigo ISCEF.

Ao terminar o terceiro ano do curso Geral de Comercio a directora Rolanda chumbou-o na prova oral de Noções de Comercio, Direito Comercial e Economia Política, obrigando-o a apresentar-se a exame nas provas de Setembro – Outubro.

O seu irmão depois de ter reprovado no primeiro ano do curso começou a pedalar forte nos estudos e assim enquanto ele estudava para se apresentar a exame em Outubro na disciplina que a directora por birra o tinha chumbado, o irmão passou as férias a estudar para se submeter a uma série de exames de admissão ao Instituto Comercial com êxito. Voltaram à forma inicial com o irmão a andar um ano à sua frente, já que ele depois de efectuado o exame à tal disciplina em Peniche, passou um ano a fazer a secção na Escola Patrício Prazeres.

Seu irmão em cada ano que passava o seu aproveitamento era sempre melhor do que no ano anterior, enquanto ele lá ia passando de ano mas sem grandes notas. Acabado o curso o seu irmão trabalhou na ENI – Eletricidade Naval Industrial do Grupo CUF e estudou à noite para fazer as duas disciplinas necessárias para se submeter ao exame de admissão ao então ainda ISCEF no velho Quelhas. Lembra-se, ele, da noite em que foram publicadas nas vitrinas do velho convento as notas das provas escritas. Uma multidão de jovens e pais ansiosos atropelando-se e acotovelando-se para chegarem perto das vitrines onde estavam as pautas. Ele mais alto que o irmão e que muitos daqueles jovens consegui lá chegar e ver com olhos de ver que o irmão tinha dispensado da oral com a nota de geografia a ajudar a nota de matemática. Iniciava assim o irmão uma nova etapa na corrida de fundo que é a vida. Estudar na Universidade num tempo onde as ideias e os ideais políticos fervilhavam na mente de muitos jovens estudantes e depois de tantos anos de sacrifício que os seus pais fizeram e suportaram para que eles pudessem estudar.

Já ele depois de ter terminado o curso de Contabilista seguiu estudando sozinho para se submeter a exame às duas disciplina que lhe faltavam para obter as equivalências ao sétimo ano do Liceu e poder candidatar-se ao exame de admissão no ISCEF. Não conseguiu contudo passar no exame de Filosofia no Liceu D. João de Castro no Alto de Santo Amaro, quer em Julho quer em Setembro, apresentando-se no dia sete de Outubro de mil novecentos e setenta e um em Mafra na Escola Pratica de Infantaria, com a esperança de lhe poderem dar uma especialidade em Contabilidade e Pagadoria ou em Intendência. Quis a sorte ou o destino que naquele curso aos cadetes com o curso completo do Instituto Comercial fosse dada a especialidade operacional de Atirador, enquanto a outra malta que não tinha o curso do Instituto completo fosse dada a especialidade de Intendência. Acaso estranho mas foi a realidade do sistema. O sonho dele poder cumprir o serviço militar obrigatório e estudar à noite desfez-se, passou a ser um sonho adiado.


Quando andou na escola em Peniche quer ele quer o seu irmão fizeram parte da Mocidade Portuguesa. Por dois anos consecutivos participaram aquando das férias da Páscoa no acampamento nacional que a organização Mocidade Portuguesa montava em Aljubarrota. Para lá das atividades de disciplina, de evolução na organização e lúdicas também os colocavam a correr de braço levantado à volta dos microfones da Emissora Nacional gritando bem alto "Nós Somos os Melhores". Nas provas a que se submeteu foi aprovado para “Chefe de Esquina Arvorado”. Porém ao chegar à Escola em Peniche a salazarista da diretora da Escola Industrial é Comercial de Peniche não lhe reconheceu a promoção. Chateado abandonou a organização assim como o seu irmão. Quando fizeram o último ano do curso já não faziam parte daquela organização do Estado Novo salazarista.


Quando em mil novecentos e sessenta e nove o Presidente do Conselho de Ministros promove eleições legislativas para a Assembleia Nacional, os dois irmão entram na política séria com a consciência do caminho que tinham feito assim como do caminho que seu pai tinha percorrido na Guarda Fiscal. Caminho e consciência que fazia deles opositores ao regime de Salazar e Caetano. Andaram pelas duas organizações políticas de oposição à lista oficial do regime, a União Nacional mais tarde rebaptizada por Caetano em Acção Nacional Popular. Andaram os dois irmãos mais pela CEUD - Comissão Eleitoral de Unidade Democrática do que pela CDE – Comissão Democrática Eleitoral. Escusado será lembrar que as duas organizações sofreram oficialmente pesada derrota em urnas viciadas e controladas pelos esbirros do sistema.

A política nunca mais deixou de viver com eles.

Seu pai ao contrario do seu avô nunca foi salazarista. Foi a sua vida na Guarda Fiscal vitima da pequena corrupção salazarista que dominava grande parte da sociedade. Sempre, ano sim ano sim, se apresentava nas provas que davam acesso a promoções. Mas em todos esses anos sempre se recusou dar oferendas aos superiores graduados que compravam e vendiam tais nomeações. Após o fim do Estado Novo com a instalação da Democracia o seu tio, irmão do seu pai, que prestava serviço na sede do Batalhão em Lisboa teve acesso aos arquivos das pautas finais e das pautas oficiais. Seu pai na classificação dada pelo júri das provas a pior classificação que teve foi um quinto lugar no ano em que acabou por ser promovido a segundo cabo e colocado no Posto da Guarda Fiscal em Porto Novo no Vimeiro. Em todos os outros concursos sempre nos primeiros lugares. Mas seu pai nunca deu dinheiro ou oferendas de valor e assim nunca passou de segundo cabo porque a pauta oficial obedecia a outros trâmites ou seja era feita em função dos valores recebidos extra provas e não pelos resultados do júri. Era essas a verdadeira transparência de um sistema ditatorial de pequena corrupção transversal ao próprio regime.

Do seu pai, só tem a dizer bem. De todos os corretivos que seu pai lhe deu só se perderam as ameaças que ficaram no ar porque todos, exceto o último, foram bem aplicados na altura ou momento certo. Só o ajudaram a retificar as suas manias, a encontrar ou voltar ao seu caminho. O último deu-se um dia em que ele chegou tarde a casa para jantar. O jantar tinha hora marcada para os quatro estarem todos à mesa. Porém, naquele dia tinha andado a fugir da PIDE que perseguiu os alunos do Instituto em luta contra o sistema. Ia o pai a dar-lhe um pontapé no rabo quando ele lhe agarrou o pé ficando os dois a olharem um para o outro. Esteve cinco dias sem falar em casa.

Andava já o seu irmão trabalhando e estudando quando o levaram a uma entrevista na António Maria Cardoso. Os filhos da puta da PIDE sabiam tudo, mesmo tudo, da vida deles. Foi uma entrevista ameaçadora…

Uma tarde resolveu faltar às aulas no Instituto e foi sozinho ao cinema Império ver a última sessão do "Homem de Kiev". Ao entrar para o 2° balcão entre os reposteiros lá estava um eunuco de gabardina, chapéu e óculos escuros que com o braço lhe barrou a entrada pedindo-lhe o bilhete de identidade e mandando-o sentar. Foram algumas as vezes que ao irem apanhar o comboio no antigo apeadeiro de Cabo Ruivo ao passarem pela rotunda do Baptista Russo lá estava um eunuco de gabardina, chapéu e óculos escuros a mostrar-se-lhes para os intimidar.

Com o seu irmão na Universidade o caminho dele passou por tirar a especialidade de 031 Atirador na Escola Pratica de Infantaria em Mafra.

No final do curso um cadete seu conhecido das conversas noturnas pelos cafés da vila, sobrinho neto de Alves Redol, perguntou-lhe se no dia seguinte, sábado, não podia estar às tantas horas nos Restauradores em frente ao bar onde se bebia o célebre “pirata”. Na manhã seguinte à hora combinada lá estava ele olhando em redor quando vê aproximar-se na sua direcção um Tenente Miliciano que conhecia de vista em Mafra. Cumprimentaram-se com um aperto de mão tendo o Tenente deixado na sua mão em papel seguindo de imediato o seu caminho. Também ele de imediato meteu a mão no bolso e se dirigiu para a paragem dos autocarros afim de apanhar o autocarro 39 para Moscavide sempre com a mão no bolso e não olhando ao seu redor. No autocarro subiu ao primeiro andar e sentou-se num banco vago de passageiros com o olhar fixo no cimo das escadas por onde subiam os passageiros. Ao chegar a casa nos Olivais Sul fechou-se depois no quarto e ansioso leu o que dizia o tal papelinho, - «convidavam-no a poder distribuir o jornal clandestino Avante onde seria colocado». Leu várias vezes o conteúdo antes de o destruir sanita abaixo. Falou com o seu irmão. Deixou passar o tempo e não compareceu no mesmo local para dar a sua resposta. Não deu resposta nem nuca mais ninguém o procurou ou questionou.

Já em Chaves onde foi colocado como Aspirante juntavam-se alguns dos Aspirantes com alguns Cabos Milicianos à noite nas velhas muralhas a falarem da situação, do futuro imediato que os poderia aguardar assim como das coisas que se iam sabendo de forma clandestina. Faziam-no nas muralhas afastados dos cafés, bares, e esplanadas da cidade onde as paredes poderiam ter ouvidos invisíveis ou não reconhecidos.

Estava nesse grupo de jovens militares um primo de um conhecido poeta oposicionista na altura já em Argel depois de ter desertado da guerra e do qual ele tinha comprado no circuito clandestino ou «fm – fora do mercado» o livro de poemas “A Praça da Canção”. Acreditou no que o primo do outro lhe contou e desde esse tempo e mesmo depois já com o país em Liberdade nunca gostou até hoje desse poeta e político que escreve umas coisas mas…

Na hora em que chegaram as esperadas mobilizações ele ficou por Chaves para formar Batalhão de Caçadores e o amigo Cabo Miliciano foi transferido para Tomar a fim de aí integrar outro Batalhão. Voltaram-se a encontrar no final da comissão em Luanda. O amigo estava já de regresso ao «Puto» enquanto ele e as suas gentes estavam chegando a Luanda vindo da fronteira norte de Ponte de Zadi – Maquela do Zombo.

Voltaram-se a encontrar na primeira festa do Avante realizada no Jamor. Ele como visitante enquanto o amigo fazia parte da organização concelhia de Águeda sua terra natal na festa do Partido. Não mais se encontraram.


No tempo em que os irmãos viveram separados, o seu irmão por Lisboa estudando dando continuidade ao percurso de bom aluno que logo no primeiro ano se interessou pela matéria da disciplina de Moeda, passando algum do seu tempo na Biblioteca Nacional a ler e a investigar sobre o tema. Já ele a endurecer durante dois anos nas matas distantes do leste e norte de Angola, onde resistia como podia naquela guerra, mais na defesa das vidas humanas que o sistema hipócrita lhe tinha confiado do que propriamente na defesa do tal Império que só existia na mente ortodoxa dos salazaristas

Corria já o ano de mil novecentos e setenta e quatro andando ele em operações longe da sua companhia integrado numa força militar reforçada com grupos de GE’s num ataque massivo às forças militares e populações até então controladas pela UNITA quando em Portugal se deu o primeiro sinal de que o Estado Novo estava a cair ou a chegar ao fim. Se o falhado e designado golpe das Caldas a dezasseis de Março foi o primeiro sinal do descontentamento que existia no seio dos militares de carreira, o 25 de Abril foi o dia Glorioso da conquista da Liberdade e consequente fim da ditadura que manteve o país num atraso económico e social de quarenta e oito anos. Entre o sonho e a utopia libertaram-se presos políticos, instituiu-se a liberdade política para os Partidos Políticos, as mentes deixaram as amarras de que as paredes tinham ouvidos e vieram em festa para a rua cantar, sonhar o sonho lindo, vivendo em estados pré-utópicos como nunca antes tinham sonhado ou sequer imaginado. As ruas encheram-se de cor.

Queria o seu irmão terminada que estava a licenciatura em Economia ficar a dar aulas de Métodos Quantitativos no Quelhas a sua escola mas, felizmente para o seu irmão os “vendilhões” do MES (Movimento de Esquerda Socialista) que na altura lá pontificavam não o permitiram, rumando assim até Coimbra onde a Faculdade de Economia na Universidade de Coimbra dava os primeiros passos. Poderia também ter ingressado na Faculdade de Economia da Universidade do Porto onde também o queriam para professor mas, Coimbra era mais perto de casa e, felizmente para o seu irmão, foi lá que conheceu a sua companheira de todas as horas de todos os momentos que ao longo dos anos no seu percurso sempre ascendente esteve sempre a seu lado. Também ela, sua cunhada, foi uma excelente professora e orientadora segundo comentários de antigos alunos deles que ele foi encontrando ao longo da sua vida pela cidade grande sem que soubessem o grau de parentesco que os unia.

Quando no final de dois mil e dezanove corria o mês de Novembro e o seu irmão deu a sua ultima aula na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra ele foi assistir à cerimónia escrevendo-lhe depois o seguinte:


«Foi bonita a festa mano. Naquela que foi a tua casa de trabalho, estudo, investigação e criatividade durante quarenta e cinco anos deixas saudades a muitos dos teus alunos, dos teus colegas professores, alguns dos quais ensinaste e influenciaste pelo teu amor e dedicação ao estudo da economia em geral e da moeda em particular, que se bem me lembro começou logo no primeiro ano do Instituto, hoje designado por ISEG Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa. Gostei de ouvir o teu colega professor dizer que quando te conheceu como aluno guarda até hoje a tua frase no dia de apresentação “Eu sou um Monetarista”.

No final foste agraciado com uma prenda que os teus colegas e amigos te mimaram para que possas continuar a melhorar o teu agradecimento aos deuses Dionísio e Baco e inspirado por deuses tão especiais continuares a vida no teu ritmo, na tua pedalada certa»


Ao regressar daquela aula tão especial a que foi assistir, deslizando pela auto-estrada com os olhos lacrimejantes lembrou-se de como em mil novecentos e sessenta e nove os dois pregavam a sua mentirinha aos pais, dizendo-lhes que iam ao cinema à sessão das nove no Chiado Terrasse para irem os dois assistir aos comícios que se realizavam no antigo Teatro Vasco Santana à Feira Popular a Entrecampos. Se nesse ano entrou na política séria e mais ou menos activa em mil novecentos e setenta e nove abandonou saindo para a outra margem da vida sem deixar contudo de ser um político com as suas ideias e ideologia porque para ele não há apolíticos. Todos tem uma visão política da vida. Mesmo os que dizem que não votam ou não querem saber de política estão a ter a sua visão política da mesma mostrando-se desinteressados e egoístas perante a própria sociedade em que estão inseridos.

Palmilhava no seu ritmo os quilómetros que separam Coimbra de sua casa nos arrabaldes da cidade grande lembrando-se das aulas de Religião e Moral que teve na Escola em Peniche, aulas obrigatórias, para mais tarde já no Instituto Comercial ter uma cadeira semestral sobre a Constituição da Republica com incidência como não poderia deixar de ser na Constituição de 1933. Era nesses anos desse tempo lá atrás um católico de missa dominical. Também ao ganhar consciência política do que era a vida das gentes, da miséria reinante, deixou a religião, ele que anos antes pensou entrar num seminário. Quando em Angola destacado num buraco mesmo na linha de fronteira norte com o Congo de Mobotu o jovem capelão militar do Batalhão foi visitar o seu grupo de combate ficavam até às tantas a falar quer da religião, quer dos problemas da sociedade de então sendo que alguns ainda hoje perduram, infelizmente. Não sente hoje necessidade de qualquer religião. A sua religião é “O Bem Social” digno em igualdades e oportunidades, em deveres, direitos e obrigações, numa outra sociedade mais decente do que esta do designado «capitalismo civilizado». Uma sociedade decente onde os ricos possam ser ricos mas os pobres cada vez menos pobres, ou seja, o oposto daquilo que o desenvolvimento do capitalismo de tradicional para a cínica designação de civilizado não tem permitido.


Por tudo o que se vai recordando dos seus anos de vida já passados sorri de tristeza quando vê e ouve alguma figuras políticas, intelectuais e religiosas da nossa sociedade na apresentação de um tal Manifesto contra o obrigatoriedade de aulas sobre os princípios e fundamentos da cidadania. Não entendendo ele os porquês de tal posição, pensa que só mentes perturbadas e recalcadas em princípios ortodoxos dos antigos «bons costumes e publicas virtudes» é que neste tempo de agora podem ver nas tais aulas de cidadania a figura do “diabo” do “pecado” sem vergonha ou falta de respeito pelos tais «bons costumes e publicas virtudes» do antigamente. A educação nunca foi um exclusivo da família. Hoje e sempre a educação é um sistema aberto e interactivo que começa na família e se complementa com a escola e pela vida fora com os mais velhos.

Sendo as normas escolares do Estado Democrático na sua função de dar a todos os cidadãos igualdade de ensinamentos num sistema gratuito de educação tal manifesto representa em si um ataque político retrógrado.

Hoje somos o que aprendemos e vivenciámos no passado, estando a mente de cada um em constante evolução. Não há que ter medo do que as crianças possam aprender na escola publica de hoje como aconteceu no passado em que a Religião e Moral era obrigatória.

3.

Nasceram na mesma rua, no mesmo ano, no mesmo mês com a diferença de uma semana, ele a 22 o amigo a 29.

Ele, filho de um guarda fiscal, o mais novo dos dois filhos. O amigo, filho de um alfaiate, o mais novo dos cinco filhos. Se os seus pais eram oriundos do interior profundo da Beira Baixa, os pais do amigo tinham vindo anos antes da Beira Alta. Ambos os pais em busca de melhores oportunidades e condições de vida para si e para a sua família. A vinda do interior para a capital, para o litoral, é quase tão antiga como a fundação do Reino, não é um problema de deslocação das populações que só recentemente se verifique vem de muito longe esse movimento migratório.


Quando miúdos brincavam com os outros rapazes na rua. Naquele tempo as meninas ficavam no recato da casa, a rua era para os rapazes sob o olhar vigilante das mães ou irmãs mais velhas. Foi a rua o infantário deles, a sua pré-primária, o livro sem folhas de papel onde aprenderam em cenário real todas as aventuras, todas as descobertas possíveis, incluindo o fugir à polícia quando andavam no meio da calçada de basalto a dar pontapés numa bola de trapo envolta por uma meia de vidro que já não servia para as senhoras usarem nas pernas, ou ao fundo da rua no relvado que pertencia à Companhia das Águas, hoje pomposamente chamada EPAL.

A rua onde nasceram e viviam era uma espécie de península rodeada por fábricas e pela linha do comboio havendo duas saídas para a avenida maior que a ligava ao mundo exterior.

Quando chegaram aos seis anos entraram para a escola pública do “Sobe-e-Desce”, que ficava entre a antiga estação de comboio dos Olivais e Moscavide. Alguns outros rapazes da rua deles foram para o externato privado em Moscavide, mas eles foram para o ensino público. Faziam o caminho de ida e vinda a pé, sendo inicialmente na ida acompanhados por uma das mães dos que andavam na escola do Sobe-e-Desce, por causa do comboio rápido para o Porto que passava na estação dos Olivais entre as oito e meia e as nove. O caminho era feito já com o bibe da farda vestido, pela rua da Centieira passando pelo arco da Rua Nova subindo-a para depois descerem a rua 33 até à passagem de nível na estação de comboio dos Olivais e, entrarem na rua que os levava a Moscavide a meio da qual ficava a Escola Primária. Hoje é um edifício que foi ocupado por alguém depois do vinte e cinco de Abril encontrando-se muito mal tratado.

Ao entrarem para a primeira classe tiveram como professora uma senhora algarvia de sua graça Aline. Ele só lá andou na primeira e na segunda classe já que o seu pai foi promovido a segundo cabo, colocado em Porto Novo, Vimeiro, mudando-se depois para o Baleal, fazendo ele a terceira e quarta classe em Ferrel com uma professora de sua graça Carlota. Professora que também lhe deu explicações para o exame de admissão à Escola Industrial e Comercial de Peniche. Já o seu amigo fez da primeira à quarta classe e preparação para o exame de aptidão à Escola com a senhora professora Aline sempre na escola primária publica do Sobe-e-Desce.

Esta semana ao almoçarem uma açorda de sável com o dito peixe frito a preceito, recordaram algumas coisa das vidas deles. Nessas lembranças o amigo recordou-lhe o tempo em que ele apanhava muitas reguadas até que um dia gritou que tinha fome pondo a classe toda a rir. Foi verdade, apanhava tantas reguadas que depois tinha que ser o irmão que andava um ano à sua frente a carregar com a mala no regresso a casa pois as mãos inchadas das reguadas não a conseguiam segurar. Andavam a aprender a escrever nos cadernos de duas linhas. Ele começava a escrever bem mas depois por um problema de visão na altura ignorado continuava a escrever fora das duas linhas, daí às reguadas pela professora Aline era um instante. Assim andou até que um dia os pais o levaram ao médico. O problema foi detetado e de certo modo resolvido, embora até hoje ele não consiga fazer um risco direito, uma esquadria bem feita. Já na escola em Ferrel também teve uma outra cena de reguadas. Ali a escola era de manhã e à tarde. Numa dessas tardes depois de um ditado deu tantos erros que as reguadas que apanhou e o choro que chorou foi ouvido em casa pela mãe, pois moravam perto da escola. Ao chegar a casa, para azar dele a professora Carlota morava mesmo ao lado da casa de seus pais, a mãe quis saber o que se tinha passado, quem tinha chorado tanto, mas ao tomar conhecimento das causas e de quem tinha assim chorado, a mãe ainda o pôs de castigo pelos erros dado no ditado.

Muitas outras histórias e castigos apanhou, como ele costuma dizer só se perderam os que ficaram no ar. Ontem e hoje sem traumas, nem revolta, antes agradecido com amor a todos os que por bem o souberam castigar.

Terminado o curso geral do comercio na Escola em Peniche voltaram para Lisboa a fim de continuarem a estudar no então Instituto Comercial. Quis o destino que voltassem para a mesma rua onde tinham nascido e vivido os primeiros anos. Regressaram anos depois ao número 114 da sua rua reatando a amizade de crianças.

O irmão já no Instituto Comercial, ele na Escola Patrício Prazeres a fazer a secção preparatória para a admissão ao Instituto e o amigo na Escola Comercial Veiga Beirão. Quando estudavam todos no Instituto, o amigo ou por se ter atrasado, ou se ter esquecido de entregar as habilitações literárias, numa época em que passou mal pois viu a morte levar-lhe a mãe, foi incorporado na tropa como soldado. Deram-lhe uma especialidade na área das transmissões, mas quando se viu mobilizado para a guerra, pensou e decidiu dar o salto fugindo para a Bélgica. Ele e o seu irmão estudavam no Instituto e trataram de obter o certificado de habilitações literárias do amigo que entregaram depois à família para eles poderem fazer chegar o certificado aonde ele estava exilado.

De novo estavam separados. Felizmente a vida do amigo correu-lhe de feição, trabalhando nunca deixou de estudar mudando da área da contabilidade para a medicina. Regressou à sua terra depois de Abril acabando por se formar em Medicina.

Casaram, cada um vivendo as suas vidas com a sua família. Passaram alguns bons anos sem se encontrarem até que um dia se voltaram a reencontrar por Telheiras. O amigo era médico de clínica geral no Centro de Saúde em Santa Iria fazendo alguns fins de semana no posto do Centro de Saúde de Alverca, onde ele sem médico de família atribuído esperava pelas suas vindas.

Foi assim que quando no início do ano de dois mil e dezassete a ecografia à próstata acusou a existência de dois pequenos quistos e antes de o amigo se reformar pediu-lhe num desses domingos de manhã no Centro de Saúde de Alverca para o mandar para as consultas de várias especialidades no Hospital de Vila Franca de Xira, incluindo claro a especialidade de Urologia. O amigo fez-lhe a vontade e emitiu os pedidos para o Hospital o poder receber. Ficou com a boa vontade do amigo a dever-lhe aquilo que nenhum dinheiro pode pagar, a gratidão. Todos os médicos, não foram muitos, que consultou mostrando os resultados da ecografia lhe diziam para ele não se preocupar com os quistos que lhe tinham aparecido na próstata mas, o seu pensamento não estava nem andava descansado. O amigo também lhe disse para não se preocupar, contudo fez a carta ao hospital que o chamou passados poucos meses. Há coisas que nunca se poderão esquecer. Aquela carta fez toda a diferença. Talvez hoje esteja a escrever estas linhas porque deve a sorte aquela carta que o amigo fez ao hospital pedindo uma consulta de urologia.

Nasceram na mesma rua, no mesmo ano, no mesmo mês com uma diferença de uma semana, ele a 22 e o amigo a 29.


4.

10 de Novembro de 2011

No cais do Barreiro entrou no barco. Sentou-se junto da janela virado para a foz do rio. Aquela hora da manhã as pessoas entravam apressadas no barco que logo deu sinal de partida para a margem da cidade grande.

O dia já ia longo. Tinha-se levantado às quatro e meia da madrugada. Com sorte não chovia quando às cinco e um quarto saiu para a rua a fim de dar o passeio higiénico com o seu amigo Master que indiferente à hora e à necessidade que ele tinha em se despachar tudo farejava com a sua calma de cão grande rafeiro e amigo. A noite ainda estava bem escura. As árvores e as varandas dos prédios deixavam cair os pingos da chuva que não havia muito tempo teria caído. Ninguém na rua só eles.

Já na margem norte da cidade grande dirigiu-se para norte tomando o carro emprestado pela sua companheira.

Quando iniciou a viagem já chovia uma chuva entre o nevoeiro cerrado e a chuva molha tolos, Com cuidado foi-se afastando da cidade grande em direção à cidade de Castelo Branco. As ideias corriam e processavam-se em continuo na sua mente ansiosa. Não tinha grande esperança em boas notícias mas não deixava de ter uma luz a brilhar de esperança ténue. A chuva deixou de cair deslizando o carro baixinho pela A23 numa corrida surda contra o tempo. Queria lá chegar antes que seu pai pudesse chegar para lhe telefonar informando-o que estava à porta do Hospital à sua espera.

Chegou pouco passava das oito da manhã encontrando lugar para estacionar em frente ao portão principal que para ele apareceu como que por graça. Muitos procuravam apressados encontrar um lugar e o corre corre das pessoas naquela manhã fez-lhe lembrar o mesmo cenário junto aos hospitais da cidade grande.

Telefonou-lhe então. Estavam a chegar, vinha de táxi e dentro de cinco minutos estariam lá. Ficou na porta principal mas o táxi passou e nem parou seguindo ele apressado atrás procurando ver para onde tinham ido. Já não conhecia os cantos à casa. Desde que sua mãe sofreu o primeiro AVC que só lá voltou aquando do segundo para a colocar dentro daquela caixa a que chamamos caixão e já tinham passados mais de dez anos.

Apanhou-os na entrada das consultas, abraçaram-se com o pai a perguntar-lhe: - o que estás a fazer aqui?. Foi uma pergunta por perguntar porque ele sentiu a satisfação no olhar do seu pai. Embora o senhor do táxi o acompanhasse às consultas naquele dia ele tinha alguém do seu sangue consigo, o filho mais novo.

Os medos que o acompanharam na viagem depressa se confirmaram. Quando o seu pai num guiché de atendimento apresentou o cartão de reformado da GNR (onde nunca trabalhou) e não o cartão de utente do serviço nacional de saúde tiveram de se dirigir a um outro guiché. Aí o senhor Leitão tirou da pasta duas cartas dizendo que deveria haver engano porque havia uma outra pessoa com o mesmo nome do seu pai mas não era engano. Pagaram a taxa moderadora e passaram à sala de espera onde os televisores desligados por um problema informático aumentava a ansiedade dos doentes e acompanhantes. Enquanto o tempo parecia não passar ele tirou dos envelopes as análises que o seu pai tinha feito. Estava lá tudo. A réstia de esperança apagou-se morrendo ali naquela sala atulhada de utentes ansiosos, o PSA e a ecografia não enganavam.

Já passava uma hora da hora marcada para ser atendido quando o chamaram e passaram os dois para um corredor cheio de outros doentes que esperavam à porta dos diversos gabinetes médicos. Seu pai impaciente andava pelo corredor para trás e para a frente. Ele bem tentava meter conversa que o pudessem acalmar mas nem as conversas quer sobre a azeitona que estava tão bonita em Setembro e que com a falta de chuva e o calor de Outubro se encheu de bicho, o acalmava mas, lá ia dizendo antes de nova caminhada pelo corredor, que a esperança era que em Novembro chovesse para que alguma azeitona galega se pudesse safar. Ao fim de mais quase uma hora foram chamados ao gabinete entrando os dois sentando-se depois do médico os mandar sentar. O médico abriu o relatório da biópsia e de forma seca e directa perguntou se não tínhamos recebido a marcação de consulta para oncologia já que com ele estava tudo tratado porque o cancro era tratado pelo colega de oncologia.

Ele ainda tentou argumentar: - senhor doutor o meu pai tem oitente e oito anos...procurando o diálogo mas de forma seca e final o médico disse-lhes: - o meu colega irá dizer-lhes como será, aqui já não há mais nada a fazer.

Levantaram-se educadamente despediram-se do médico e sairam com o seu pai a reclamar porque o fizeram lá ir, vinha só para a outra consulta, dizia.

O senhor Leitão aguardava-os indo buscar o táxi enquanto ele falava com o pai sobre a próxima consulta. Despediram-se seguindo o pai para a Zebreira e ele dirigiu-se pensativo ao carro para regressar à cidade grande.

Deu à ignição, desligou o rádio e começou a deslizar pelo asfalto com os telemóveis em posição. Cancro era a palavra que lhe parecia ir rebentar na cabeça, que não o largava e lhe causava um dor diferente no peito. Deslizando pela A23 telefonou à companheira e disse-lhe. O irmão tinha o telemóvel desligado, poderia estar a dar alguma aula ou em alguma reunião e não insistiu. A palavra cancro não lhe saía da frente. Ligou-lhe a filha mais mais velha mas, mais uma vez andava às voltas com problemas na atribuição do fundo de desemprego pela segurança social . Mais à frente ligou-lhe a filha mais nova que ao receber a notícia como que as lágrimas se ouviam no silêncio momentâneo, animou-a como pode, tinham que aguardar pelo que diria o médico especialista não se podendo construir cenários até porque a imaginação raramente é boa conselheira. Depois ficou só com a estrada, o céu azul com algumas nuvens brancas e os seus diálogos com a sua sombra. Muitos quilómetros tinha pela A23 em diálogo com a sua sombra embora naquele momento naquela viagem tudo se transformou tudo parecia diferente de um ácido que lhe ia queimando o estômago pois tocava directamente no seu pai sendo pior do que se fosse com ele próprio...porque seu pai, porque agora aos oitenta e oito anos… cancro a malfadada doença ou degenerescência das células que agora lhe entrou porta adentro… porquê?. Por fim conseguiu falar com o seu irmão e com ele dividiu o peso que o acompanhava sentindo-se um pouco mais leve com a partilha. E, quando parecia que a sua unidade de processamento de dados estava mais calma um raio fulminante invadiu-o pois a consulta com o médico oncologista foi marcada para o dia 24 de Novembro, o dia em que estava marcada uma greve geral… que iria suceder… de novo o restante caminho foi feito com um peso enorme na sua mente.


Anos mais tarde já seu pai tinha partido desta viagem terrena quando escreveu:

Que irá dizer-lhe o médico hoje?

Que os valores continuam baixos e assim está tudo no bom caminho, ou, dir-lhe-á que os valores sofreram uma alteração que é preciso averiguar?

Esta é dúvida sua companhia desde a ecografia quando lhe apareceram os quistos. Uma dúvida que se vem transformando sofrendo com o tempo alterações de estados de espírito, mas que vive continuamente consigo.

No início todos os médicos lhe diziam para não se preocupar que quistos apareciam a milhões de pessoas, tinha é que ir controlando-os com exames periódicos. Mas, a dúvida logo se instalou dizendo-lhe: -«olha que pode não ser bem assim, não confie naquilo que lhe dizem, procure averiguar, vá ao hospital, procure fazer mais exames». Foi assim que um médico amigo no seu Centro de Saúde o propôs para consulta hospitalar. Esperou cerca de quatro meses até lhe marcarem consulta. Ao falar com o urologista hospitalar também ele numa primeira análise lhe disse para não se preocupar propondo-lhe fazer nova ecografia dali a três meses. Mas ao contar ao jovem médico o que sabia e imaginava dos seus ascendentes, acordaram em fazer uma biopsia. Foi passar uns dias na casa da praia. A dúvida acompanhou-o. Algo lhe dizia que a coisa podia não ser bem como lhe diziam. Ao «não se preocupar» como lhe diziam os médicos, ganhava raízes dentro de si a dúvida. Dúvida que o ajudou a preparar-se para o pior. E se os quistos fossem já aranhas com a sua baba peçonhenta a desenvolveram-se a partir das células que degeneraram? Algo poderia estar a acontecer. Deixou crescer a barba. Não foi a primeira vez que deixou crescer a barba. Desta vez era diferente o porquê de deixar crescer a barba.

Quando se sentou frente ao jovem médico para saber os resultados da biopsia já estava mentalizado. A notícia de que um dos quistos era coisa ruim, embora em fase inicial, não o apanhou de surpresa. A aranha com a sua baba peçonhenta estava viva dentro de si. Sem avisar, sem dor começava a aranha com a sua baba peçonhenta a construir a sua teia. E agora doutor, que alternativas tenho, perguntou. Tudo o que o jovem médico lhe disse, os prós e os contra de cada uma das três alternativas que tinha para o seu caso, já que uma quarta alternativa usada no SNS estava fora de questão pelo tamanho da sua próstata, confirmou ele ao chegar a casa e consultando no Google o Instituto da Próstata. Não quis ouvir parecer de nenhum outro médico. Era com aquele jovem médico que iria ser seguido. Andou quase um ano na designada "vigilância activa", já que a aranha com a sua baba peçonhenta estava no início da criação da sua teia. Não foram tempos fáceis. De noite acordava e em silêncio pensava como estaria a teia da baba peçonhenta que a maldita aranha construía dentro de si, sem avisar, sem dor, alimentando-se clandestinamente do seu próprio sangue. Ficava atento, tentando com a sua fraca audição aperceber-se de algum sinal do trabalho na construção da teia com a baba peçonhenta que a desgraçada da aranha estaria a construir dentro de si alimentando-se do seu próprio sangue clandestinamente.

A médica de clínica geral que conhecia em Santa Maria disse-lhe logo "isso é para tirar". O seu irmão disse-lhe logo se ele queria ser operado por especialista de Coimbra que até vai operar nos Estados Unidos, sendo um dos melhores reconhecido internacionalmente. Ouviu, sorriu agradecido à preocupação do seu irmão e no final disse-lhe: - «mano eu sou do regime geral, não pertenço à ADSE». Dias depois o seu irmão disse-lhe que o tal especialista levava pela cirurgia à próstata cerca de oito mil euros. Voltou a dizer-lhe que queria ser operado pelo jovem médico urologista naquele hospital da periferia da cidade grande pertencente à rede do SNS. Explicou ao irmão que nas conversas iniciais com o jovem médico mais do que saber que o mesmo é também professor universitário, investigador, troca conhecimentos com antigos colegas de especialização franceses e italianos, que não tem consultório privado porque a vida não é só trabalho, e, que antes de optar por medicina pensou seguir matemática aplicada. Confiava no jovem médico daquele hospital do SNS na periferia da cidade grande.

Contudo no final de nove meses em «vigilância activa» cansado da tensão que é o viver sabendo que dentro de si tem uma aranha de baba peçonhenta a construir a sua teia, disse ao jovem médico que queria ser operado. Este voltou a recordar-lhe todos os contras que da operação radical à próstata poderiam advir. Ele já sabia os riscos que ia correr, mas não queria optar pelos tratamentos de radioterapia. Iria correr o risco de poder ficar impotente. No dia da marcação para a cirurgia ainda o levaram do quarto até à porta do bloco operatório onde aguardou até que o médico lhe comunicou que não o poderia operar pela greve dos enfermeiros e enfermeiras. Tentariam na semana seguinte a operação. Assim aconteceu. Nunca ele tinha passado uma noite num hospital aguardando uma intervenção cirúrgica, mas aquela era já a segunda noite por na semana anterior a cirurgia não se ter realizado pela greve do pessoal de enfermagem. Passou a noite calmamente. Escreveu coisas no seu telemóvel e dormiu descansado. Acordou, tomou banho, rapou-se como lhe indicaram na noite anterior as enfermeiras e aguardou a viagem de maca por corredores e elevadores até ao bloco operatório. Não gostou quando entrou no bloco do aspecto frio da sala mas não teve muito tempo para olhar em redor pois a médica anestesista logo tratou de o adormecer. Quando na sala de recobro voltou a ter conhecimento que estava vivo não dizia coisa com coisa nem sabia bem onde estava embora pedisse para o levarem para o seu quarto. As enfermeiras sorriam e diziam-lhe para esperar mais um pouco. Ao recuperar totalmente da anestesia não sentia grandes dores. O médico tinha-lhe dito que utilizava a prostatectomia radical por laparoscopia. Com a mão calmamente reconheceu os três pensos no seu abdómen inferior. Estava sozinho no quarto. O outro doente já tinha tido alta e durante a noite outro doente chegou. Por motivo de nova greve que se anunciava o jovem médico falou com ele e optou por vir para casa ao fim de quarenta e oito horas em vez de ficar no hospital. Explicaram-lhe como teria de ir mudando o saco da algália, assim como os comprimidos que teria de tomar quer para as dores quer para evitar qualquer inflamação. Todo o pessoal do hospital o tratou como um hóspede vip. Facilmente se adaptou a estar e a dormir com a algália. Passou a ir ao Centro de Saúde a mudar o penso, a tirar os pontos e foi lá que uma enfermeira lhe tirou o cateter que tinha na bexiga através do pénis. Tudo correu sem dor. Estava ele todo feliz da vida quando deu conta que não controlava a urina. Ninguém o tinha informado da incontinência urinária. Caiu no fundo do poço. Sentiu a revolta apoderar-se dele por ter de usar fralda ou mesmo penso. Não queria aceitar tal situação vivendo dias de revolta e amargura. Porque não o avisarem. Porque ninguém lhe falou deste problema. Toda a sua revolta sossegou um pouco quando no final de um mês voltou ao hospital para ser visto pelo jovem médico. Quando entrou no gabinete e o médico lhe perguntou de imediato quantas fraldas usava por dia, acalmou um pouco queixando-se de não o terem informado da situação que vivia. Tentou o médico acalma-lo explicando-lhe que o caso dele foi o mais demorado de todas as intervenções que tinha feito. Normalmente a prostatectomia radical por laparoscopia levava duas a duas horas e meia, contudo a dele demorou cerca de quatro horas por a próstata ser muito grande, abriu-lhe a bexiga para certificar-se que estava tudo bem mas que a deixou bonitinha. O que será uma bexiga bonitinha, pensou para si. Que tudo tinha corrido bem e agora era esperar pelo resultados da análise. A teia da baba peçonhenta já ocupava dez por cento da próstata e logo ali ele pensou para si, a filha da puta da aranha trabalhou bem. Quanto ao problema da incontinência teria de fazer determinados exercícios quando urinasse para fortalecer os músculos esfincteres que agora ficaram a controlar o sistema urinário da bexiga já que os vesicais detrusores que controlavam o sistema foram retirados com a próstata. E claro que lhe deu uma série de conselhos do que não deveria fazer, tais como, pegar em pesos, fazer esforços etc. No dia 9 de Novembro ao retirarem o cateter que tinha na bexiga descobriu que não controlava a urina. Caiu no fundo do poço sem encontrar escada que lhe permitisse subir de volta. No dia 1 de Janeiro ao vestir-se logo de manhã para ir dar a sua volta com a sua amiga e maluca Sacha a sua sombra segredou-lhe para não usar o penso a ver como corria o passeio ao apanhar com o saquinho os dejetos da Sacha. Assim fez. Voltou satisfeito porque durante o passeio não tinha pingado. Andava todo contente quando ao fim de três dias o pingo descontrolado voltou. Caiu de novo para o fundo do poço, numa luta surda consigo próprio sem fronteiras pois continuava a não aceitar o ter de andar com penso e dormir com fralda. Uma luta diferente desenrolava-se dentro de si. Luta surda de muitas revoltas. Por meados do mês de Janeiro voltou à sua casa no interior raiano, teimoso que é fez tudo ao contrário do que lhe aconselhavam. Andou a cavar castigando o corpo, dobrado a arrancar algumas ervas daninhas, pegou nas vasilhas onde tinha as azeitonas para lhes mudar a água. Usou e abusou do que não deveria fazer. Ao voltar para os arrabaldes da cidade grande quando se levantou para a volta matinal com a sua Sacha, a sua sombra segredou-lhe de novo «deixa de usar o penso, tu vais conseguir». Corria o dia 25 quando tomou tal decisão. Para trás ficaram tempos de revolta dentro de si mesmo. À sua frente agora tinha o problema da inexistente ereção. Nova luta começou dentro de si. Uma luta diferente já que ao optar pela cirurgia o jovem médico o informou dos possíveis contras da mesma. Outra luta surda mas menos revoltante pois a decisão de correr esses risco tinha sido sua. Tomando conhecimento de como esse facto natural têm tanta importância na vida de um homem normal foi a custo sofrendo e mentalizando-se que o mais importante era estar vivo sem que a aranha com a sua baba peçonhenta pudesse expandir a sua maldita teia alimentando-se do seu próprio sangue clandestinamente sem dor. A duvida tomava a quase certeza de que o jovem médico cirurgião ao retirar-lhe totalmente a próstata que era grande não conseguiu deixar-lhe os dois ou pelo menos um dos minúsculos feixes de nervos que correm de cada um dos lados da próstata e que controlam a ereção e assim a custo foi-se convencendo que o importante era estar vivo aparentemente saudável passando a olhar a vida de um modo diferente sem deixar de amar e viver a vida em plenitude. Com o evoluir favorável dos valores do indicador “PSA” passou do controle trimestral para o controle semestral mudando também de urologista hospitalar. O novo médico também jovem é de opinião que nunca se deve desistir pelo encara a nova fase de forma positiva sem grandes duvidas mas quem não arrisca não petisca, mesmo quando já nos mentalizamos que vemos a vida com um outro sabor, diferente mas sempre agradável com amor.

Se um dia quando chegou da guerra já não era o mesmo jovem que cerca de dois anos antes tinha partido, também depois de sair daquele bloco operatório do hospital na periferia da cidade grande também já não era o mesmo idoso que lá tinha dado entrada.


Não sendo o mesmo homem que já foi embora seja a mesma pessoa pelo que já viveu na sua vida de setenta anos quando lhe perguntam se «está tudo bem consigo?» tem sempre uma resposta da treta num «penso que sim» sem cor. Aprendeu que nunca sabemos ao certo se estamos bem, já que pode haver sempre uma aranha que com a sua baba peçonhenta possa estar dentro de nós clandestinamente a construir a sua teia mortífera. Podemos sentir-nos bem mas não sabemos ao certo se estamos realmente bem. Nos milhões de células que nos constituem algumas delas por razões que desconhecemos podem como que enlouquecer e degenerar na tal aranha que com sua baba peçonhenta se vai alimentando-se do nosso próprio sangue clandestinamente começando a destruir-nos sem dor, a comer-nos destruindo-nos silenciosamente, chamando a si outras células para enlouquecidas constituírem aumentando continuamente a sua teia, o seu núcleo sempre ávido de nos vencerem silenciosamente.

Hoje a dúvida é um medo diferente dos outros medos que vamos conhecendo ao longo da vida. Dúvida que é um estado de alerta permanente. Que não sendo depressivo no seu caso é uma companhia que gostava de não ter conhecido. 


5.

Eram jovens saídos da puberdade. Andavam na mesma escola secundária. Desde o primeiro ano em que entraram para o ciclo preparatório que andaram na mesma turma que por coincidência do acaso era mista nas aulas. Os recreios estavam separados por um muro real e imaginário em que uns e outros estavam proibidos de pisar quanto mais ultrapassar.

Ele olhava para fora da turma, gostava de uma moça lá da sua aldeia. Contudo ele sabia que ela sua colega desde o primeiro dia de escola gostava dele naquele último ano em que estudaram naquela escola. Ela era uma excelente aluna sempre com notas altas, já ele era um bom aluno com as notas suficientes para passar os anos sem grandes sobressaltos de maior.

Chegados ao fim do terceiro ano do curso geral de comércio, quinto ano de então que agora dizem ser o nono ano, com os seus quinze ou dezasseis anos, duas alternativas havia para os jovens como eles, ou começavam a trabalhar que naquele tempo não se conhecia esta coisa de «desemprego» e muito menos de «subsídio jovem», ou os que tinham a sorte de os pais poderem continuar a suportar as despesas continuavam os estudos noutra escola em uma outra cidade que lá não havia possibilidade de mais estudos.

Quis o destino que ele e o irmão, filhos de funcionário publico Guarda Fiscal, pudessem com muito esforço continuar a estudar regressando à cidade que os viu nascer. Ela com o pai ligado às lides do mar por lá ficou fazendo o percurso normal dos jovens de então, trabalhar namorar e casar para construir nova família.

Com o pai a ficar por Peniche, ele o seu irmão e a sua mãe vieram viver para a mesma rua onde eles, filhos, tinham nascido e saído aos nove e oito anos de idade para Ferrel. Para trás ficaram alguns amigos, amigas e amores de juventude. Na cidade tudo era diferente. Refizeram-se antigas amizades assim como novas amizades surgiram. Novos amigos, novos amores com namoro, outros horizontes onde cabia a esperança de um vida e um mundo melhor para todos. Ficou a sua vida suspensa com a mobilização para a guerra em Angola. Sobrevivente dessa guerra absurda, viveu à chegada do regresso o perfume da utopia que nesse tempo se respirada como consequência do glorioso 25 de Abril de mil novecentos e setenta e quatro. Também ele no ano seguinte ao ter regressado da guerra casou constituindo uma nova família. Se nos primeiros anos de casado passavam algumas semanas de férias na Ilha da Armona no reino dos Algarves, pouco depois de lhe nascer a segunda filha voltaram um ano a passar uns dias de férias na Consolação. Para trás ficaram as férias algarvias passando a família a ir de férias para a praia da sua juventude onde não só cresceu como também aprendeu a conhecer o mar, a ouvir o deus do mar que também fala e gosta de ser ouvido e respeitado.

Já ele estava separado quando ao passar um dia pela rua da cidade onde tantas vezes passou na sua juventude de estudante em Peniche olhou com olhos de ver e viu a sua colega de escola desde o primeiro ao quinto ano em que por lá andaram. Os anos passaram no seu passo constante e certo. Há cinquenta anos que não se falavam até que um ano tomou coragem e entrou na loja onde a empregada lhe perguntou o que desejava, apontando ele para a pessoa que estava a atender uns clientes. Esperou que os clientes fossem atendidos olhando os artigos expostos. Quando os clientes saíram dirigiu-se à antiga colega de escola, olharam-se, sorriram e ela diz-lhe o seu nome completo ao que retorquiu e disse-lhe o nome dela completo de solteira. Os cinquenta anos passados sem se verem nem saberem nada um do outro não foram suficientes para eles se esquecerem dos seus nomes completos. Agora sempre que ele passa pela rua da sua cidade de juventude entra na loja para a cumprimentar e desejar-lhe o melhor que a vida tem para dar à família dela.

Eram jovens e hoje são grisalhos com caminhos distintos mas há coisas que não se explicam.


6.

A princípio era o verbo, este se fez gente. Gente que se espalhou no mundo do Planeta Terra deste nosso Universo. Uns correram em busca do graal outros em busca de paz e outros ainda em busca de nada.

Nasceu como atrás ficou registado num dia lá longe … estava-se no final 1950, num quarto alugado da cidade de Lisboa, nos Olivais, onde seus pais viviam. Nasceu no final da madrugada do dia 22 de Dezembro, no fim de uma das noites mais longas do ano, por isso ainda é Sagitário embora de ascendente Capricórnio.

Nasceu, cresceu, a rua foi a sua pré-primária aprendendo como se defender dos mais velhos e dos mais fortes. Ia a fazer os oito anos quando rumou com a família para o concelho de Peniche. Aí à beira do mar foi crescendo e estudando para nas férias grandes depois de acabar a escola e passar nos exames poder beneficiar da liberdade de enrolar nas ondas batidas ora na areia ora nas rochas, andar no meio dos pinhais aos ninhos, jogar descalços à bola, subindo e descendo as dunas fazendo todas as tropolias possíveis não passando o limite porque em casa havia quem lhe pedisse razões que ele tinha de respeitar. Cresceu assim livre e quase selvagem… longe da cidade que o viu nascer, longe da confusão, longe do mundo de então.

Quis o destino que para continuar a estudar tivesse que voltar para a sua cidade de Lisboa e coincidência do acaso voltando à rua onde nasceu.

Assim se passaram alguns anos de juventude estudando, aprendendo que o mundo era muito mais do que aquilo que lhe mostravam os senhores que mandavam no país; com tardes de namoro sonhando o futuro aoss do Adamastor no Alto de Santa Catarina… olhando o Tejo cá em baixo cheio de barcos que chegavam e partiam… eram cacilheiros, eram cargueiros, eram petroleiros, eram paquetes de turistas... eram também... muitos paquetes de soldados armados e amados que partiam para as guerras em África…

O sonho de uma vida feliz comandava a vida… mas, com o serviço militar obrigatório chegou África, Angola o seu destino. Por lá como alferes miliciano numa companhia de caçadores conheceu o medo que era de perder algum dos jovens que tinha sob o seu comando e responsabilidade. Quantas vezes ele e o medo se cruzaram cara a cara no silêncio quer das noites quer dos dias, os dois sozinhos frente a frente. A morte por uma vez o visitou olhando-se por instantes olhos nos olhos ela se ausentou não tendo voltado a aparecer por láVivia a cada dia, a cada momento a esperança do regresso para o colo de sua mãe. Esperança que era o alimento que fortalecia a vontade de viver aquela vida mesmo que não sendo a vida com que sonhou havia que resistir vivendo numa terra que não era sua e onde o futuro não existia para ele e para muitos daqueles valentes soldados tão jovens quanto ele. Quanta revolta silenciada e oprimida? No peito, quanta dor silenciosa? Quanto sofrimento… e para que…?

No tão desejado sonhado e ansioso regresso, no momento de subirem para o avião que os ia trazer de novo à Pátria que os viu partir, a guerra silenciosa das revoltas oprimidas subiu também ela no avião, sentando-se nos mesmos lugares onde ainda incrédulos de que tudo aquilo era verdade sorriam uns para os outros como que a medo que aquele momento mágico não fosse verdade. Veio a guerra silenciosa e muda colada como uma lapa a cada um deles, militares à força.

Regressado ao calor do lar familiar de seus pais e irmão quis viver o sonho da utopia que nesse tempo de setenta e quatro andava cantando pelas ruas e se respirava no ar como sinfonia celestial. Nesse tempo corrido de tantos sonhos, lutas e utopias quase sem tempo para se viver o momento da Liberdade, chegou o casamento. Dele nasceram as suas duas filhas … durou 25 anos…. até que murchou o amor, acabou a afetividade seguindo cada um o seu caminho decidindo ele cortar de todo com esse passado vivido com a sua antiga companheira mãe de suas filhas. Um tempo que vive arrumado e esquecido no fundo da sua memória de vida.

Antes de entrar no serviço militar em Outubro de setenta e um tinha estudado e completado o curso de contabilista no então Instituto Comercial de Lisboa, para depois de casado e a trabalhar continuar a estudar à noite conseguindo terminar a licenciatura em Gestão de Empresas … Foram noites... Foram anos… de estudos, de muitos trabalhos e canseiras...

Fez a sua carreira trabalhando quase sempre em empresas multinacionais não olhando a sacrifícios muitas vezes em prejuízo dos estudos com os anos a serem complementados de forma alternada, foi conquistando as posições normais de quem sabe trabalhar sem atraiçoar os outros, antes ajudando aqueles que com ele trabalhavam a evoluírem. O seu pensar, a sua filosofia de trabalho dizia-lhe que quanto mais soubessem os seus colaboradores menor era a sua preocupação e trabalho. Porém aos 49 anos depois de atingir o topo da hierarquia caiu atraiçoado vitima de intrigas fizeram-lhe «cama à espanhola» por quem julgava ser seu amigo ficando desempregado. Aos cinquenta chegou a separação e… assim foi vivendofazendo a sua travessia do deserto, entrando em negócios ruinosos até que perdeu quase tudo, restando-lhe pouco mais que a vontade de continuar a caminhar de cabeça erguida.

Não estava habituado mas as contingências da vida atiraram-no para aquela situação de acordar todos os dias sem ter a obrigação de se levantar… não estava reformado, ainda faltavam muitos anos para se reformar, mas estava classificado com um chip de “velho para trabalhar”, não pertencia ao número clausus mas também não sabia ao que pertencia. Tinha bilhete de identidade e numero de contribuinte. Tinha obrigações e deveres mas parecia que os seus direitos estavam suspensos. Não foram gravados no tal chip. Ninguém o queria para trabalhar, era demasiado velho para tal. O organismo que lhe daria o direito a uma pensão de reforma não o considerava nas suas listagens, era ainda muito novo para aparecer na listagem dos que tinham direito a receber pensão de reforma… A sua obrigação era continuar a trabalhar mesmo que ninguém lhe abrisse as portas.

A procura contínua de saídas para a vida levam-no a ser um “falso solitário; aprendeu a gostar de estar só, não conhece a solidão porque sempre se sente acompanhado quanto mais não seja por si próprio.

Meteu-se em negócios com outros sócios e cada sociedade em que entrou, cada buraco que lhe levaram quase tudo o que tinha. Viveu sem trabalho, sem dinheiro, sem seguro nem pensão de reforma. Sobreviveu na outra margem da vida, não se deixou ficar no fundo do poço. Desanimo e desistir eram e são palavras proibidas no seu dicionário de vida… lutar era palavra de ordem… perante as adversidades há que saber crescer, embora sobreviver ao desânimo não seja tarefa fácil. Foi difícil por vezes muito difícil mas aguentou-se e sobreviveu!

Nunca teve propensão para se lembrar de algumas datas mas sabe que até aos quarenta anos de idade bebia muito pouca água, talvez porque a água canalizada que chegava a casa no tempo de juventude não fosse agradável ao gosto. Beber água não era pois um hábito. Às refeições habituou-se a beber vinho e só quando ia com amigos comer um petisco, caracóis ou marisco é que bebia cerveja, mas a sua bebida preferida era o vinho, mais o tinto que o branco. Assim vivia até que um médico de medicina do trabalho numa empresa de imagem corporativa na década de oitenta lhe mandou fazer uma bateria de exames incluindo o “hiv” (por ter andado na guerra em Angola). Ao voltar à sua presença com os resultados dos exames e análises efectuados, o médico em silêncio olhou os valores das análises e exames, tomou nota e por fim ao falar disse-lhe: - o senhor não bebe água, tem os rins preguiçosos e também têm um pouco de asma. Admirado com o que ouvia da fala do médico perguntou-lhe porque lhe dizia aquilo. Então o médico explicou-lhe que a conjugação de determinados valores que as análises apresentavam permitiam-lhe dizer o que lhe tinha dito. Gostou da explicação e daquele médico afável e humano, passando a partir desse momento a beber água, de tal modo que ao comer uma feijoada à transmontana bebendo água o pessoal que o conhecia do trabalho não queriam acreditar no que viam. Conseguiu recolocar os rins a funcionarem normalmente. Quando bebe menos água do que a quantidade a que o seu corpo se habituou, os rins dão-lhe logo sinal queixando-se.

Da asma, nem gosta de falar. Nunca foi um asmático que precisasse de andar com a bomba atrás. Apareceu-lhe por volta dos quinze ou dezasseis anos. Foi aprendendo a conhecer o que lhe causava os ataques alérgicos, esquecendo-se da alergia quando se tratava de degustar caracóis, até que apanhou um valente susto e nunca mais comeu tal bichinho. Cozinhava-os para os outros os comerem, mas desde os trinta e oito anos que nunca mais um sequer entrou na sua boca, nem para provar sequer se estavam bem de tempero. No serviço militar quando lhe deram a especialidade de atirador de infantaria, aproveitando a seleção de voluntários para os comandos e a escolha dos cadetes para operações especiais, o médico que foi a Mafra nessas funções, levava o pedido de um amigo do seu irmão que prestava serviço militar no Hospital Militar da Ajuda o H.M.D.I.C. e, esse médico não só o livrou de ir para Lamego ou Luanda, como o recomendou para a consulta externa no Hospital Militar Principal à Estrela por causa da asma. Aprendeu a provocar crises de asma a si mesmo na tentativa de poder passar aos serviços auxiliares, mas depois de ter andado de Mafra para Lisboa em consultas e exames, ao terminar a formação da especialidade puseram-no entre a espada e a parede, ou desistia da consulta externa para passar aos serviços auxiliares ou chumbava a especialidade e teria de andar mais onze semanas em Mafra. Depois de todo o mal que a si mesmo causou, desistiu de procurar a passagem para os serviços auxiliares. Não quis voltar mais a Mafra, ao “calhau” e lá seguiu de armas e bagagens até à terra quente de Chaves. Não passou aos serviços auxiliares mas ficou o vício do fumar. O engraçado é que durante o tempo que passou em Chaves, depois em Viana do Castelo, seguindo-se as terras do Mumbué e da Ponte de Zadi em Maquela do Zombo no quente e húmido norte de Angola nunca teve qualquer crise, ou um pingo sequer de asma e tantas foram as asneiras cometidas, os volumes de tabaco sem filtro “Português Suave” fumados entremeados com o “AC” angolano. Casou, criou canários em casa e, só depois de ter dado todos os canários a um amigo que tinha condições para os criar na sua quinta é que as malvadas crises de asma voltaram a dar sinal e a dizerem-lhe que não se tinham esquecido dele. Andou em consulta hospitalar fazendo testes no Hospital de Santa Maria. A médica que o acompanhava disse-lhe que no seu caso não valia a pena andar três anos a tomar vacinas, que teria que aprender a viver com a asma. Assim fez, aprendeu, viveu, recorrendo por vezes ao “ventilan”. Felizmente já há talvez uns dez anos que ela não lhe dá sinal de estar viva, talvez tenha hibernado, talvez se tenha cansado de o incomodar.

Voltando à água. Aprendeu a conhecer, a diferenciar uma água de outra, já que elas não são todas iguais, principalmente as de nascentes subterrâneas. As nascentes fornecem-nos águas com sabores e características diferentes, mesmo a composição físico-química da água de uma mesma nascente pode variar. Ao comprar uma garrafa de água vê sempre qual o Ph da mesma. Gosta de água com Ph mais elevado mas o mercado impôs aos consumidores águas mais ácidas que neutras. Hoje bebe água quer seja da torneira (EPAL) quer seja das fontes que existem no seu interior raiano.

Nos anos negros da sua vida não gastava em comida o pouco dinheiro que por vezes conseguia ter, para andar pelas livrarias que vão sobrevivendo aos avanços do novo capitalismo, em busca de livros sobre o tema da água. Tornou-se assíduo da internet por meio da qual ia aprendendo a conhecer os diferentes processos para o tratamento de água por imperativos de saúde pública. Navegando em viagens nocturnas chegou a um site diferente de todos os outros que até então ia conhecendo. Um site alemão mas que tinha uma versão em português. Como já tinha ouvido falar de um novo processo, enviou um e-mail a saber se tinham representante em Portugal. A resposta chegou informando de que uma empresa de Braga era a representante para Portugal e Espanha. Entrou em contacto com essa empresa mas não foi bem recebido. Não desistiu, pois filtros e químicos não lhe agradavam e aquele sistema constituído por um anel chamava a sua atenção e curiosidade desejando saber como é que funcionava já que pouco ou nada sabia do que seria física ou mecânica quântica. Começou a pesquisar e a ler artigos sobre os princípios da quântica assim como da água. Estava perante um mundo até então totalmente desconhecido para si, ao mesmo tempo um mundo novo e fascinante. Ele que na contabilidade aprendeu que o total é a soma das partes, ao entrar nesse novo mundo das partículas subatómicas onde nem sempre o total é a soma das partes, recebeu um choque que lhe aguçou a curiosidade de saber algo desse novo mundo muito estanho para a sua forma de pensar as coisas da vida e do mundo até então. Estranho mas fascinante, apaixonante. Insistindo com a empresa de Braga meteu-se um dia no Alfa Pendular e foi a Braga falar com o representante do sistema. Depois dessa reunião ainda fez com a empresa uma feira em Portimão de produtos ligados à Construção para darem a conhecer o funcionamento e as vantagens do sistema. De volta a Lisboa, às questões que lhe colocavam e ele reportava à empresa sobre como comprovar as vantagens enumeradas que diziam o sistema proporcionar, as respostas não chegavam convincentes, e a ideia de trabalhar foi ficando em banho-maria, mantendo-se em contacto com a empresa. Por volta de dois mil e sete, não só as condições para trabalhar mudaram como já havia mais conhecimento e lançou-se na busca de potenciais clientes. Pelo mês de Agosto o senhor alemão inventor do sistema, médico naturista, veio à empresa de Braga e os dois vieram até Lisboa para o senhor alemão o conhecer. Tremia por não falar inglês e logo ele era alemão. Quando os esperava no Parque das Nações lembrou-se da namorada que tinha estudado alemão no Instituto Comercial mas da qual nunca mais soube nada. A sua sorte foi que o senhor falava e dominava cinco línguas, falando também português com o sotaque alemão. Foram visitar os clientes que já tinha em carteira para poder apresentar o sistema dos anéis o melhor método de formação pratica. E, se antes nas noites solitárias por convite de um conhecido tinha entrado no mundo da água, acabou por a partir desses dias de visita a potenciais clientes entrar no mundo do sistema de tratamento da água por processo físico, sem a utilização de químicos ou de filtros, nem gastos de manutenção ou de energia. Ele que nunca foi nem vendedor nem comercial entusiasmou-se com a tecnologia do sistema. Muitos contactos desenvolveu enviando e-mails e faxes de apresentação, telefonando procurando a oportunidade de apresentar o referido sistema. Bateu a muitas portas, poucas foram as que aceitavam a apresentação, a maioria fechavam-lhe a porta na cara, dizendo que não podia ser, que o sistema não passava de mais um produto banha-da-cobra, incluindo nesta decisão pessoas que se diziam seus amigos. Algumas portas abriu e encontrou gente que ficou curiosa e deixou-o fazer a instalação experimental do sistema, principalmente porque os métodos químicos usuais não estavam a resolver os problemas que enfrentavam, quer da dureza, quer da oxidação e corrosão das condutas, quer ainda da famosa bactéria a legionella. Em alguns casos aguardou dois anos até que a administração do hospital lhe desse autorização para colocar em fase experimental o sistema de anéis envolvendo as tubagens quer de água fria, quer das águas quentes sanitárias (onde há sempre mais problemas). Responsabilizaram-se por possíveis e imprevistos danos que o sistema poderia ocasionar nas velhas condutas de água existentes nas instalações. Com a implementação do sistema conseguiu resolver problemas complicados em três hospitais públicos, onde a oxidação por um lado e a presença da bactéria legionella por outro lado eram preocupantes. Num desses hospitais públicos as colónias de legionella existentes ultrapassavam em muito o valor do limite de segurança. Todo o processo foi controlado pelo melhor e mais competente organismo publico mostrando as análises quinzenais efectuadas à referida bactéria os excelentes resultados obtidos com o sistema. Ao mesmo tempo que ia eliminando a bactéria sem utilização de qualquer químico ou gasto de energia procedia à desobstrução da matéria orgânica oxidada nas tubagens sem que tivesse ocorrido qualquer ruptura nas tubagens, algumas delas tão antigas como o próprio hospital ; outros problemas resolveu em fabricas de produtos agro-alimentares, em piscinas publicas, em prédios de muitos andares mas as portas que se fecharam foram sempre em muito maior número. A nossa sociedade continua fechada à inovação às novas tecnologias que se apresentam no mercado sem uma marca sonante por detrás. O marketing e o poder da marca é uma realidade que pesa muito na decisão dos portugueses responsáveis pelos equipamentos e sua manutenção. A sociedade dos negócios funciona mais para e com os amigos e conhecidos que tenham um nome ou a tal marca sonante implementada e conhecida por trás. Numa das reuniões para instalar novos anéis nas varias instalações da TAP chegou a dizer ao engenheiro responsável que se o sistema do anel em vez de ter a marca de Wellan2000, tivesse Siemens o valor que eles pagariam teria mais um zero e sem período experimental como o que lhe exigiam quando já tinha outros anéis (sistema) a funcionar em outro edifício e hangar, todos com bons resultados, ao que o engenheiro encolheu os ombros como que a dar-lhe razão. Em muitos aspectos a vida neste rectangulo continua de brandos costumes e publicas virtudes. O regime político mudou mas as mentalidades continuam ainda lá atrás no tempo mais ligadas ao marketing do que à qualidade do produto e do serviço. Depois, o medo de falharem na solução do problema associado à pressão e há precaridade existente no mercado de trabalho induz os novos responsáveis a utilizarem as mesmas e antigas soluções quantas vezes mais dispendiosas e perigosas para o meio ambiente, aceitando a inovação quando esta lhes é apresentada pelas marcas conhecidas de renome que dominam o mercado já que estas lhes dão a ilusão de poderem com essas escolhas garantir o seu posto de trabalho ou até melhorá-lo.

Andava nesta luta desigual até lhe aparecer-lhe um carcinoma na próstata. Aí a vida balançou ficando em suspenso a luta para novas colocações do sistema. Tudo muda na vida quando se toma consciência do inimigo silencioso que se transporta, quando o diagnóstico que nos é dado pelo médico, esperado ou não, nos informa do mal que se desenvolve alimentando-se dentro de nós sem que tenhamos dado conta. Nessa altura a vida deixa de ser o que era e vai tomando sempre novas incertezas por mais confiantes que estejamos na luta surda que naquele instante passamos a ter consciência e se desencadeia no nosso ser..

A empresa com a qual colaborava como comissionista também não tem o sistema como um produto, um serviço, prioritário e principal. De todos os colaboradores que se propuseram para agenciar o sistema foi o único que não desistiu levando a cabo com êxito várias instalações do mesmo.

Um ano após a intervenção cirúrgica a que se submeteu no Serviço Nacional de Saúde, pensou em ganhar coragem para voltar a trabalhar o sistema mas não foi nem está fácil. A idade começa a pesar. Se o jovem que um dia voltou da guerra não era o mesmo que dois anos antes tinha partido para a malfadada guerra, também agora ele homem grisalho depois da prostatectomia radical à próstata não é o mesmo na maneira como olha e sente a vida, tudo mudou na sua forma como olha o mundo que o rodeia depois de entrar e sair do bloco operatório daquele hospital publico. O outro que ele era já não existe. Agora é uma outra pessoa diferente e menos crente em tudo. Nem o facto de tomar conhecimento de que amigos da guerra com problemas da próstata se encontram em pior situação o faz voltar ao que já foi. Não é mais o mesmo. Parar, parar é de certo modo ir secando só que ele quer viver ainda mais uns anos, mentalizando-se todos os dias para a luta que diariamente enfrenta consigo mesmo. Pela zona da cidade grande e pelo interior raiano pensou voltar à luta? Pensou mas apenas isso porque já lhe vai faltando a força da vontade em lutar por um mundo com melhor ambiente. A água passou a ser não apenas um conhecimento mas uma companhia na atenção que ele dedica ao mundo que o rodeia. Sem ela nos seus três estados (sólido, liquido e gasoso) não haverá vida no Planeta Terra, por mais histórias futuristas que nos apresentem os súbditos do grande deus que é o mercado.


7.

Estava ele em Idanha a Nova a tratar dos assuntos burocráticos da herança de seu pai quando recebeu a chamada dizendo-lhe a sua companheira que estava uma senhora no veterinário onde tinha ido com o gato, a dar cachorros pastores alemães. Ele que andava a olhar via net os cães que existiam nos canis municipais, procurando uma cadela com cerca de dois anos de tamanho médio para grande, já que depois de perder o medo de cães, gosta mais de animais maiores. Ainda lhe perguntou se ela sabia o que era um pastor alemão? Enquanto ela argumentava logo pensou que poderia ser o seu guarda quando estivesse na casa da Zebreira, pelo que acabou por concordar desde que ficassem com uma fêmea já que elas são melhores a guardar e dizem que mais fiéis. Os outros cães que teve foram machos era tempo de ter uma fêmea. Foram buscá-la ao canil de uma senhora advogada monárquica no dia de Reis segundo o calendário. Restavam três animais para doar duas fêmeas e um macho. Ele escolheu a mais ramelosa e mais pequena das duas, já que os machos são sempre maiores. E assim nesse dia do mês de Janeiro de dois mil e dezoito começou o início de uma outra e nova “união de facto”.

Nesse mesmo tempo uma sua prima veterinária que cria gatos tinha para doar uma gatita Scotish Straight, a ultima de uma ninhada.



Com diferença de dias chegaram a casa, a Sacha
(Pastora alemã) e a Ísis ( Scotish Straight) . Até aqui tudo bem. Ele sabia antecipadamente que todo o trabalho de passear e cuidar da Sacha seria seu, não tinha duvidas sobre o assunto nem se importava. Imaginava ele ser a Sacha a companheira para o ajudar a andar mais do que estava fazendo, depois, o andar só faz bem à saúde, servindo de oposição à vida sedentária que os dias em casa sentado a ler ou ao computador sempre proporcionam.

Contudo nunca imaginou que os animais, Sacha e Ísis não pudessem conviver em paz e até poderem brincar os dois, não só eles como com os outros dois Kit e Luka, gatos que já lá viviam lá em casa. A casa não sendo um palácio tem área suficiente para todos poderem viver em harmonia. Mas muitas das vezes na vida há sempre um novo mas, que no caso são os medos e traumas que não consegue entender, desistindo mesmo de procurar o entendimento para tantos medos. Custa-lhe, dói-lhe que assim seja mas a casa não é sua. De pequenino é que se troce o pepino diz o velho ditado popular mas o mesmo não tem aplicação nestas paredes de outros passados que teimam em estarem ocultos de forme sempre presente.

A Sacha como pastora alemã assim que passou na veterinária para a primeira observação ao chegar a casa logo deu mostras do seu instinto de querer ser a líder fazendo do espaço da casa o seu território, ao que ele lhe impôs de imediato regras que cumpria com dificuldade sempre procurando ultrapassar o limite que lhe era permitido. Procuraram ajuda para o adestramento e socialização junto de um jovem treinador numa localidade vizinha onde se deslocavam aos domingos de manhã para a seguir às aulas de adestramento ter um tempo de socialização com outros animais que entretanto chegavam para a mesma finalidade, a socialização entre eles. Correndo tudo bem pois a Sacha é esperta embora sempre pronta a ser ela a líder sendo sociável com os outros animais não se envolvendo em discussões caninas.

Com muita paciência e insistência, contra ventos e marés, quantas vezes fechando os ouvidos às criticas contra a sua teimosia sempre que ele obrigava a Sacha a obedecer não podendo ser como ela queria mas sim como ele desejava que fosse. Algumas vitórias foi alcançando sendo que hoje a Sacha não sobe para cima dos sofás mesmo quando eles estão ausentes de casa, não sai a correr para a rua à sua frente aguardando pacientemente sentada dentro de casa que ele acenda a luz das escadas ou chame o elevador para depois olhar os olhos dele à espera do sinal para poder sair entrar no elevador dar duas voltas sobre si própria e sentada fixar-se na sua mão aguardando a recompensa do biscoito, ou descendo cada lanço de escadas sem puxar aguardando em cada andar ter a recompensa do biscoito; sena igual se passa quando o elevador chega ao destino, seja ao rés de chão seja ao andar onde eles vivem e coabitam com ele a abrir a porta do elevador mantendo-se a Sacha sentada fixando os olhos nos deles aguardando o sinal para avançar. Não morde mas é bruta a agradecer. Gosta de saltar colocando as patas dianteiras no peito ou nas costas e sempre que pode mete a boca gostando de apertar mãos ou braços nos seus dentes, mordiscando e nem sempre quem consente tem a calma de retirar o braço ou a mão lentamente podendo por isso aleijar-se nos dentes finos que ela tem. Há contudo ainda assuntos e coisas que ele não consegue controlar nela. A ansiedade que existe nela e na casa. O problema da ansiedade pode até ser genético, mas naquela casa tudo se faz ao contrário não a ajudando a Sacha a aprender a conviver socialmente com os outros animais da casa nem com as raras pessoas que lá vão. Com a idade o problema em vez de ir acalmando vai-se agudizando e a Sacha cada dia menos socializavel. Procurar ajuda no exterior pode amenizar mas o problema tem raízes na própria casa. A Sacha não pode conviver com os gatos. A Sacha fica fechada num hall pequeno quando a filha, genro e netos vão almoçar ou algum dos netos fica lá por casa. Ele sente, nota a ansiedade que o animal cria ao não ser autorizada e ensinada a conviver quer com os gatos, quer com as outras pessoas. Sofre calado por ela e com ela, tendo depoios quando a leva a passear que a contrariar fazendo-lhe lembrar um passado algo distante na sua vida em que ouvia a sogra dizer para as suas filhas «olha faz isto senão o teu pai é mau e bate-te». Linda sogra ele tinha. Quando se olham nos olhos um do outro ele sabe que a Sacha o respeita lhe é fiel ao ponto de ela pastora alemã ter medo que ele a abandone; medo que depressa degenera em ciúme quando o vê a cuidar dos outros animais. Vai aprendendo a compreender as diversas falas dela, desde o ladrar com ciúme, ao ladrar de medo ou de alerta quando alguém entrou no quintal ou se encostou ao portão, assim como o ladrar de alegria quando algum amigo que lhe fez festas entra no quintal da casa raiana.

Nada na sua vida agora é pensado sem ao mesmo tempo pensar e a Sacha? Aceitando de bom modo o condicionamento ou mesmo o confinamento que a Sacha trouxe e tem na sua vida de agora.




8.

Acordou ainda era madrugada escura, só mais tarde o relógio da entrada, que está sempre adiantado uns minutos, deu as seis. Entre o levantar ou deixar-se ficar, optou por ficar, dando liberdade às lembranças de acontecimentos do Mumbué e de Chaves na figura dos segundos comandantes dos batalhões, quer do BC10 quer do 5010, homens militares diferentes, mas ambos defensores da rígida disciplina da ordem militar.

Chegou ele à cidade de Chaves no início do mês de Abril, depois de tirar a especialidade de atirador na Escola Prática de Infantaria, no “calhau” em Mafra. Estava em casa de férias dadas pela tropa, quando recebeu a guia de marcha para se apresentar em Chaves. Ele que tinha escolhido para ser colocado em Leiria, Tomar ou Évora tinha Chaves como destino. Foi ver ao mapa onde ficava o seu futuro próximo, era no cu de judas, tão longe de casa, mas perto da fronteira com Espanha o que afinal poderia não ser mau de todo.

Apanhou o comboio em Santa Apolónia num domingo pelas quase onze da noite. Um comboio a abarrotar de militares que parava em todas as estações para receber e despejar militares, chegando a Campanhã no Porto, pela manhã do dia seguinte. Feito o transbordo para S. Bento viajou em outro comboio pela linha do Douro até à Régua, com nova mudança para apanhar a linha do Corgo, linha de carris estreitos onde uma máquina a vapor suava por todos os poros para depois de passar por Vila Real subir até Chaves. Passava das duas da tarde quando o maquinista puxou a fundo os travões e fez a máquina apitar o sinal de fim da viagem. Na mesma viagem de Lisboa até Chaves viajou também um cabo miliciano. Ambos Foram até à cidade comer alguma coisa pois tinham a tarde e a noite para se apresentarem no quartel, BC10.

Feita a apresentação de todos os aspirantes a oficiais chegados nesse mesmo dia foram sujeitos a praxe de recepção na parada pelos alferes do BC10 que os puseram em cuecas a marchar e a “encher” flexões.

No dia seguinte de manhã receberam a ordem para integrarem as companhias que iam começar a dar instrução militar aos soldados que iniciavam o serviço militar obrigatório, a chamada recruta. Ficou numa companhia comandada por um capitão profissional do quadro complementar, conhecido pela alcunha de “Xerim-pim-pim”. Estava ele no segundo ou terceiro dia de instrução quando a meio da manhã recebeu ordem para se apresentar no gabinete do senhor Segundo Comandante da Unidade. Lá foi com algum tremor nas pernas falar com o senhor tenente-coronel. Apresentou-se de acordo com a praxe e disciplina da ordem militar e em sentido ouviu o senhor segundo comandante da unidade, dizer-lhe que ao ler o seu curriculum, tremeu fazendo das tripas coração para não ser notado o seu medo-ansioso, mas o senhor tenente coronel segundo comandante da unidade olhando para ele prosseguia dizendo que, como o senhor capitão de operações precisava de um adjunto nomeavam-no para essas funções de forma oficiosa para não prejudicar a sua ascensão a alferes (era necessário pelo menos dar duas recrutas para se passar de aspirante a alferes). Assim, estava oficialmente dando a instrução de recruta a soldados, sendo na prática um adjunto do senhor capitão de operações com um horário de trabalhador de serviços. Entrava às nove e saía às quatro e meia. O trabalho não era muito, nem difícil, e, pelo bom desempenho deram-lhe depois a gerência da messe de oficiais da unidade BC10. Quando o sargento-ajudante conhecido por “estraga-a-tábua” fez a asneira de pintar com tinta manchas pretas um dos porcos que se criavam para consumo da unidade com a posterior intenção de o levar como seu, não castigaram o dito sargento ajudante porque era uma figura incontornável da unidade, mas retiraram-lhe a gestão do rancho-geral e tudo o que lhe estava associado, passando ele a acumular também essas funções. Tudo ele levava a contento sem meter a mão na massa tão usual nessas situações. Nesse tempo apenas recebeu um reparo do senhor capitão de operações, seu superior hierárquico, que lhe chamou a atenção pelo facto de ele ler o “Comércio do Funchal” jornal pouco recomendável para os do sistema implantado pelo “Botas” continuado a preceito pelo senhor “Professor” o das conversas em família mais a preto do que a branco num cinzento escuro que empurrava a esperança cada dia mais para lá do limite do horizonte; orgulhosamente sós, era a satisfação dos eunucos que se alimentavam do regime, eunucos esses que não gostavam do tal jornal semanal publicado a partir da Ilha da Madeira onde pontificava o jovem Vicente Jorge Silva que mais tarde já em democracia viria a ser uma referência no jornalismo em Portugal.

Andava a sua vida nesta calmaria de oficial de serviços em vez de instrução aos valentes soldados, quando lhe chegou às mãos o quadro das mobilizações gerais dos mancebos do país de suas excelências os do regime imposto a torniquetes pelo “Botas” implementado constitucionalmente pela constituição de trinta e três. No B.C.10 iria formar-se um Batalhão com destino a Angola, um pelotão para S. Tomé e dois pelotões para Cabo Verde. A maioria dos aspirantes e cabos milicianos que estavam na unidade eram integrados no Batalhão de Caçadores 5010 a formar, sendo os pelotões independentes comandados por aspirantes e cabos milicianos filhos dos bens instalados do regime não fossem as suas mamãs e papás sofrerem algum chilique, que essas coisas de mato e ração de combate não eram para os jovens filhos de pessoas de bem reconhecidas e amigas do regime, antes para aqueles que nasceram para trabalhar pela subsistência da casa e da família e cujos mancebos tinham a obrigação de ir combater os “comunistas” que nos queriam roubar o sagrado Império que tantas vidas nos custou a descobrir e a manter sempre fiéis aos princípios da santa madre igreja católica apostólica romana segundo os bons costumes e as publicas virtudes em vigor desde que o santo homem, o “Botas”, impôs ordem e respeito aos desvarios que alguns queriam ver reinar.

Chegaram novos soldados, novos cabos milicianos, aspirantes e capitães milicianos. Do quadro, apenas sargentos e oficiais (tenente, capitão, major e tenente coronel), todos para a CCS Companhia Comandos e Serviços. As companhias operacionais tinham à frente antigos alferes que tinham sido poupados à mobilização, mas, pelas dificuldades do regime em formar oficiais pela Academia Militar, viu-se o regime na necessidade de chamar de novo ao activo os alferes na disponibilidade para como tenentes terem uma formação de aviário, dando-lhes depois o comando de uma companhia, sendo promovidos a capitães no momento do embarque para as frentes de guerra em África.

Deixou o gabinete e o lugar de adjunto do senhor capitão de operações da unidade, também ele mobilizado para um outro batalhão e foi de novo para a parada dar a instrução de especialidade a soldados na segunda companhia que pensava serem mobilizados para o seu grupo. Engano o seu, já que a maioria foi depois integrar a terceira companhia.

Chaves era uma cidade pequena lá no cimo da terra quente de Trás-os-Montes muito longe da capital, vivendo a sua economia muito dos militares que ciclicamente por lá passavam a caminho das guerras em África. Vir a casa no fim de semana era difícil, senão mesmo impossível para quem não tinha carro como era o seu caso, porque não havia transportes públicos que ligassem Chaves quer ao Porto quer a Lisboa, a sua cidade. Num desses muitos fins de semana passados em Chaves livres de serviço alguns dos aspirantes decidiram ir passar o sábado às piscinas do Hotel Vidago Palace em Vidago. Quando lá estavam viram chegar o senhor Major segundo comandante do batalhão em formação. Passaram o dia juntos, voltando juntos para Chaves onde ao jantar receberam uma aula sobre a disciplina militar dos “vietcong” comandados pelo grande líder Ho Chi Minh. Calados, desconfiados sem coragem para interromper ou questionar o senhor major segundo comandante do batalhão em formação, ouviram perplexos a defesa da disciplina militar operacional de um exército comunista, combatido pelo poderoso exército do não menos poderoso estado americano. Naquele tempo em que sobre eles tinha caído a mobilização para defender uma parte importante do virtual Império criado pelo “Botas”, ouvir de um segundo comandante de batalhão em formação, tais afirmações deixou-os a todos de boca aberta e calados a pensarem: - Quem era aquele Major que fisicamente por ser de baixa estatura e viciado em pesos e halteres mais parecia um gorila vaidoso no seu corpo musculado?

Era aquele militar de carreira major e segundo comandante do batalhão em formação um militar que quando falava às tropas em formatura as deixava imóveis num silêncio que até o voo das moscas se podia ouvir quando ele fazia as suas pausas entre uns palavrões igualmente musculados.

Muito diferente era o Comandante de Batalhão com aspirações a chegar alto na hierarquia militar. Pessoa viscosa, escorregadia, a cheirar a falsidade, que se lhes apresentou em Chaves com um discurso tipo conversa de família do senhor “Professor”, aconselhando aqueles que tinham ideais a guardá-los numa caixinha de algodão. Como ele não gostou, sempre que pode não comparecia aos “beberetes” que o senhor gostava de fazer.

Cumpria com os seus dois cabo-milicianos um processo de disciplina rígida, ensinando os soldados na arte da G3 segundo as instruções dadas para a preparação da guerra de guerrilha, pelos altos crânios militares do Portugal Continental alguns dos quais nunca terão sentido o zumbido das balas inimigas sobre a sua cabeça e muito menos os pintelhos do cú a bater palmas aquando das emboscadas. Os soldados na quase totalidade oriundos dos trabalhos do campo ou da construção civil, minhotos e transmontanos, de pouca formação, gente humilde habituada aos trabalhos duros, alguns eram forças brutas da natureza. Jovens que ao serem castigados com as habituais flexões quando cometiam alguma irregularidade ou abuso, era canja para eles habituados a trabalhos bem mais duros. Só que ele e os seus cabos milicianos não mandava cumprir o castigo com flexões, preferia levá-los depois de almoço para o meio da parada, onde depois de formados recebiam a ordem de “apresentar armas” ficando todos nessa posição até um deles dar sinal de fraquejar pelo cansaço. Desse modo aprendiam a ser “um por todos e todos por um” porque todos pagavam pela irregularidade cometida apenas por um deles. Outra das situações em que eram diferentes dos outros grupos de instrução, prendia-se com o facto de quando tinham acções de formação fora do perímetro do quartel, ao atravessarem as ruas da cidade ou de alguma aldeia vizinha, o faziam com ordem em silêncio, dar piropos às moças mesmo quando elas sorriam para eles era proibido e dava lugar a mais um “apresentar armas” ao sol no meio da parada. Assim decorreu com ordem e disciplina a formação dos mancebos caçadores, distintos infantes da Pátria, cujo destino estava à partida traçado, as matas angolanas esperavam por eles e lá a primeira regra, a mais importante de todas era, “atirar a matar antes que nos matem a nós”, a segunda regra era “se ouvir um segundo tiro nunca poderei estar no mesmo sítio e posição em que ouvi o primeiro”, sendo a terceira regra o “ter de se fazer o possível e o impossível para poderem regressar sãos e salvos às suas casas” custasse o que custasse.

Acabada a instrução militar de caçadores no BC10 em Chaves segui o Batalhão para a bonita cidade de Viana do Castelo onde teriam formação de aperfeiçoamento militar e ali aguardavam a ordem para o embarque.

Quase ao terminar o IAO - instrução de aperfeiçoamento militar operacional no regresso pela manhã de uma instrução nocturna na serra de Santa Luzia, em cima de uma viatura militar ele deu por terminada a disciplina que proibia os piropos, quando ele próprio lançou um piropo a uma moça que passava. De imediato saltou a tampa aos soldados que desataram a bater palmas e a dar vivas.

Os dias passavam à espera da ordem de embarcar, sabendo nesse tempo de quase final de setenta e dois que iriam para o leste de Angola.

Um dia que se preparavam para gozarem um fim de semana mais alargado o senhor Major segundo comandante do Batalhão 5010 chamou todos os aspirantes ao seu gabinete. Sentado aguardou em silêncio que todos eles ficassem frente a frente com ele. Se o silêncio pesava as perguntas que se seguiram ficaram para sempre guardadas na sua memória. Perguntas tão simples como:

  • Vocês sabem quantos analfabetos têm no vosso grupo?

  • Vocês sabem quantos são casados ou o sustento da família antes de começarem a cumprir o serviço militar?

Todos em silêncio. Nenhum deles sabia se tinham órfãos, analfabetos, quantos eram os casados, se tinham filhos… De seguida o senhor Major segundo comandante de Batalhão em formação, passou-lhes pessoalmente um atestado de meninos menores, como poderiam querer ser líderes se não conheciam uma parte muito importante da massa humana às suas ordens. Nunca mais se esqueceu visualizando o gabinete onde isto se passou no Forte de Santiago da Barra, na bonita cidade de Viana do Castelo, faltava pouco tempo para embarcarem na aventura angolana. Falou com ele poucas vezes aquando da estadia em Viana do Castelo mas esse dia ficou gravado na sua memória.


Naquele tempo já o Senhor não falava com os seus Apóstolos. Eram um tempo sem tempo tantas as incertezas e as dúvidas que o tempo naquele tempo carregava aos ombros.

A manhã na cidade banhada pelas águas do Lima via partir mais um companhia de jovens militares para um destino conhecido mas incerto. Os valentes soldados aprumados nas suas fardas verdes de cerimónia, engomadas a preceito, último modelo das passerelles do regime, botas à prova de chu-lé trabalhadas pelos melhores artesãos do reino a brilharem de tanto lustro lhes ser dado, olhar perdido no destino que mais do que nunca era incerto foram desde o Forte de Santiago da Barra até à estação dos Caminhos de Ferro ao cimo da bonita Avenida dos Combatentes da Grande Guerra com tempo para poderem olhar o rio que ao fundo da mesma calmamente entrega as suas águas ao mar, sentindo eles que ao entrarem naquele comboio estavam a entregar a sorte do seu destino aos senhores da guerra que em palácios bem acomodados os mandavam para a guerra indiferentes ao sofrimento de suas famílias.

A viagem inicial de outras viagens fez-se sem paragens até Santa Apolónia em Lisboa. Uma viagem sem sol que o dia amanheceu cinzento e triste como que pressentindo a sorte daqueles mancebos. Alguns deles nem a barba precisavam de fazer ainda de tão novinhos e tenrinhos. No final da linha o maquinista acionou os freios do comboio já a tarde do dia

15 de Dezembro estava quase no seu ocaso. As viaturas militares esperavam-os e depressa entraram nelas de modo a evitar que alguns cidadãos que na altura regressavam a casa depois de um dia de trabalho pudessem manifestar algumas frases incomodas. Dali seguiram para o então Regimento de Engenharia 1 no Campo Grande onde lhes estava reservada a última refeição do dia em solo pátrio.

Ele oficial de dia à Companhia depois de zelar pelo jantar ordenado do pessoal foi com seu irmão e os seus furriéis jantar à Churrasqueira do Campo Grande ali ao lado.

À hora marcada voltaram todos a subirem para as viaturas militares com destino ao aeroporto militar no Figo Maduro. Por duas vezes tinha olhado a casa onde vivia com seus pais e irmão nos Olivais Sul, por duas vezes os seus olhos se encheram de lágrimas e uma dor no peito sangrando que só quem vai para uma guerra que não lhe pertence de todo, sabe como é. Sua mãe quando o irmão voltou para casa acompanhado dos primos de Azambuja aquela hora da noite, viu nesse instante que o seu filho, o seu menino querido já tinha partido sem um beijo, sem um abraço, sem um adeus daquela que um dia o gerou no ventre, o pariu e o criou com tanto amor e carinho. Mas mãe que é mãe tudo perdoa a seu filho.

Viagem de noite num avião da Força Aérea sobre o mar chegando ao romper do dia às terras avermelhadas e verdes de Luanda.

Angola, terra grande e rica. Grande de tantos contrastes, de tantos odores, de tanta beleza, talvez por isso tão cobiçada. Mas, que fazia ele ali naquele campo atulhado de militares, muitos como eles chegando andando meios perdidos, enquanto outros festejando o regresso olhavam com ar de gozo para eles jovens maçaricos meio amedrontados meio atarantados naquela confusão, que nem as noites corridas pelos muitos bares e cabarés nocturnos de mulheres fáceis, fumo e álcool em Luanda os acalmava. Tudo era estranho, os cheiros, o calor húmido que não os deixava secar depois dos banhos ao longo do dia, a comida na Pensão Setubalense onde ele recusou papaia a pensar que lhe estavam a servir abóbora, santa ignorância a sua; as pessoas brancas e negras que passavam por eles olhavam-os de lado, «mais uns que vêm fazer a guerra no mato» desprezo era o sentimento que lhes transmitiam, como se fossem eles, pobres jovens militares, os culpados por aquela situação anacrónica de uma guerra sem sentido nem futuro.

A partida para destino desconhecido chegou. Foram transportados em camiões civis, tipo transporte de gado. Dois dias demorou a viagem por estradas asfaltadas. Chegaram ao Mumbué no quase final de tarde do dia 22 de Dezembro, sendo recebidos em delírio pelos camaradas da Companhia que foram render. Eles dançavam, eles cantavam, eles batiam com os pratos, uma loucura em festa para a qual olhavam perdidos sem saberem que dizer, maçaricos que eram. Arrumado o pelotão na caserna que foi destinada ao seu grupo, sentou-se na sua mala junto à messe de oficiais, olhando atónito para a festa que soldados, furriéis,e oficiais faziam pela chegada deles. A alegria louca de uns era a interrogação e o medo dos “maçaricos” acabados de chegar para os renderem. Ali, sentado no meio do nada, numa terra que não era sua nem nunca foi talvez nossa, rodeado pela loucura em festa, pensava no seu pai, na sua mãe de quem não se despedira. Ali estava sentado os olhos embaciados pelas lágrimas que não caiam, a sua fiel companheira G3 entre as mãos, com o pensamento muito longe, sem compreender o que fazia ele ali, onde estava a época natalícia da sua cidade de ruas iluminadas, onde pairava o cheiro das castanhas assadas, como estariam os ardinas anunciando os jornais da tarde?. Alguém o procurou, não se lembra quem foi, e o ajudou a levar as coisas para o quarto que os quatro alferes dividiam. Ninguém ali a não ser ele próprio e a sua sombra sabia, soube que naquele dia 22 de Dezembro de 1972, o dia da chegada ao Mumbué fazia ele os seus 22 anos. Uma idade bonita para festejar com seus pais e irmão, já que a única namorada que tinha tido a abandonou anos antes sem lhe dar qualquer justificação. Ali estava ele só no meio daquela festa que não era sua, embora fosse uma festa justa para todos aqueles, também jovens militares à força, que eles tinham ido render.

Nos dias que se seguiram ao tomar consciência com a realidade absorvendo os odores daquela terra, a ideia que nele fermentava desde Chaves transformou-se no seu objectivo de vida enquanto militar: – “a defesa das vidas humanas que o regime tinha colocado sob as suas ordens custasse o que custasse”.

Quando chega o mês de Dezembro e se aproximam as datas que marcaram a sua juventude, o 15 e o 22 de Dezembro lembra-se de tudo o que a memória guardou, o bem que fez, mas também o mal e a dor que causou aos outros. Do bem que fez e terá feito não se arrepende, fez o que tinha a fazer. Já do mal e da dor que causou aos outros não se livra, a culpa é como o medo, viajam sempre connosco gostemos ou não, não há como fugir acompanham-nos em versão siamês.


Em Angola, por sorte ou por azar a sua companhia ficou colocada a sul da sede do batalhão junto à estrada asfaltada que ligava a Serpa Pinto, junto da localidade do Mumbué; o azar era sempre que se deslocavam a Silva Porto ou Nova Lisboa para reabastecer, tinham de passar pela sede do batalhão localizada em Chitembo.

Com mais ou menos peripécias, com mais operações quer no mato em busca do inimigo, quer junto das populações em acção psicológica onde procuravam estabelecer alguma confiança embora não dominassem nenhum dos dialectos que aquelas populações falavam o quioco, o guenguela ou o luchase, sendo que a grande maioria deles não falava português, limitavam-se essas operações ditas de acção psicológica a prestar alguma assistência através dos cabos enfermeiros, quais paramédicos, que ministravam uns comprimidos ou umas injeções para as dores no corpo às populações que vinham até eles, procurando dessa forma estabelecer laços de paz e confiança. A vida corria sempre na esperança da chegada das férias a fim de poderem sair dali e respirem outro ar, apanharem um outro sol que não aquele que conheciam dias e dias dentro do arame farpado ou de G3 nas mãos percorrendo quilómetros nas matas sem fim da sua zona de intervenção.

Iam decorridos vários meses na rotina das idas para o mato, descanso no quartel, quando numa tarde em que era o único oficial no quartel da sua companhia de caçadores, o operador de transmissões lhe entrega uma ordem recebida da CCS que dizia simplesmente, “posto 08Andrade apresente-se neste”. Informou o primeiro sargento que por ordem superior se ia deslocar à sede do Batalhão. Chamou um condutor e no jeep Willys lá foram os dois até Chitembo, onde a situação estava bastante calma, tirando o soldado da porta de armas não se via ninguém. Na porta da messe de oficiais estava a sua espera o senhor Major segundo comandante do Batalhão que lhe fez sinal para entrar. Foi atrás dele até ao quarto do senhor Major. Este mandou-o entrar e sentar certificando-se que não havia mais ninguém nas imediações e fechou a porta. Ele não percebia nada do que se estava a passar, até que olhou para um quadro atrás do senhor Major e mais preocupado ficou. O senhor Major tirou de uma das suas gavetas vários livros que ele guardava religiosamente no fundo da sua mala. Livros que tinha comprado uns na cooperativa Livrelco em Lisboa, de que era sócio, outros numa livraria em Viana do Castelo que tinha meio escondidos alguns livros em “fm” (fora do mercado, livros proibidos pela sagrada censura do regime). As pernas tremiam-lhe, a voz sumiu-se, o sangue parecia esfriar nas veias, mas o senhor Major calmo entregou-lhe “O Volga desagua no mar Cáspio” dizendo-lhe que era um livro anti-revolucionário, enquanto que para ele o livro era uma crítica ao regime dos sovietes, mas mudo continuou, quieto começava a perder o medo, “como é que ele tinha os seus livros?, livros que ele guardava no fundo da sua mala, era o pensamento que bailava na sua mente. De seguida o senhor Major entregou-lhe “Um passo em frente dois à retaguarda” dizendo-lhe para ter cuidado com aquele tipo de livros. Por fim ao por em cima da secretária o livro “Princípios Fundamentais da Filosofia” apontava para o quadro atrás dele com as suas anotações sobre a dialética, pois estava a gostar de o ler, não lho entregando de imediato. Prosseguindo num tom de voz menos militar, disse-lhe que o chamou porque a maioria dos oficiais estava para o Sector em Silva Porto, que eles na segunda companhia estavam debaixo de olho, que deveriam fazer as operações tal e qual as ordens recebidas. Na sede do Batalhão sabiam que eles se andavam a cortar não indo a todas as coordenadas indicadas. No seu caso em especial tinha de ter muito cuidado porque o médico era um «pide» que andava a quer fode-lo. Por último disse-lhe que foi ele próprio Major, que foi ao seu quarto mexer nas suas coisas, voltando a dizer-lhe para terem muito cuidado com as operações, já que estavam a ser observados e controlados. No final da conversa mostrou-lhe o seu mini ginásio de pesos e alteres, acompanhando-o à saída da messe que continuava vazia. Despediu-se batendo pala agradecendo ao senhor Major tudo o que lhe tinha dito. No caminho de regresso ao Mumbué não falou, embora o condutor lhe tivesse perguntado várias vezes se estava tudo bem. Era um condutor amigo a quem ele num auto corpo delito que lhe foi levantado por ter tido um acidente que meteu civis, tudo fez e escreveu, como alferes que na companhia representava a polícia judiciária militar, por forma a que não sofresse pena de prisão efectiva, tendo a consciência de que ele próprio não estava a ser imparcial e justo na elaboração do auto, mas naquele cenário de guerra procurou ajudar um amigo subalterno, um companheiro de infortúnio obrigado como ele a participar numa guerra que não era deles, logo, fez o que tinha a fazer. Ainda hoje quando se encontram nos almoços de antigos combatentes o abraço deles é diferente de muitos outros abraços.

Chegou ao quartel ainda não tinha chegado nenhum dos outros graduados, entrou no seu quarto, guardou os livros de novo no fundo da sua mala, sentou-se na cama, ligou o gravador reprodutor de cassetes e ouviu “Trás Outro Amigo Também” várias vezes, assim como “Pode Alguém Ser Quem Não É”. À hora do recolher da bandeira e depois do rancho saiu para cumprir com as obrigações da disciplina militar sem esquecer mais tarde a formatura com chamada de presença na hora do recolher.

Umas semanas depois, o sargento ajudante da CCS quando ia buscar a esposa para a levar para o Chitembo, teve um acidente automóvel vindo a falecer sem assistência do médico que estava ausente sem autorização oficial. Foi o fim das acções do alferes médico agente da «pide» no Batalhão. Levantaram-lhe um processo disciplinar e foi recambiado para bem longe do Chitembo. Quando se encontrou de novo com o senhor Major segundo comandante de Batalhão, no meio de todos os outros oficiais, este piscou-lhe o olho e sorriu como a querer dizer-lhe, “daquele já nos safamos”.

Já depois do 25 de Novembro de setenta e cinco encontrou-o um dia em que foi com a sua mãe à cantina dos Serviços Sociais da Guarda Fiscal, perto do Jardim do Tabaco. O Major promovido depois a Tenente Coronel tinha sido afastado do exército por ao comandar o quartel em Chaves não ter acatado as ordens do general comandante da região militar norte aquando do golpe militar de vinte e cinco de Novembro, declarando a unidade como revoltosa fazendo parte dos então “SUV”(soldados unidos vencerão). Infelizmente morreu cedo. Um militar com consciência política que vivendo dentro do exército tinha, como muitos deles, sonhos políticos de Liberdade e Igualdade.

Há uns tempos ao andar na net a viajar pela história do quartel de Chaves que deixou de ser B.C.10 para passar a ser R.I.19 mantendo-se como Batalhão de Apoio de Serviços da Brigada de Intervenção, consultou a galeria dos comandantes da unidade ao longo dos tempos, de todos havia uma fotografia excepto a do seu amigo Major promovido a Tenente Coronel, o seu lugar estava vazio.

Um Militar, um Homem que continua guardado nas suas memórias de guerra, como uma pessoa, um militar de disciplina rígida, mas alguém que foi seu amigo, que o ajudou também a ser o que é hoje.













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