Por
esta altura do ano, volto a tirar-te do teu lugar na
estante para partilhar
contigo aquilo que ao longo dos anos me tens dado.
Hoje
talvez pelo frio me convidar leio-te
devagar sem qualquer tipo de pressa, vejo que ainda manténs parte do
talão de controle que naquele tempos se usava «LIVRELCO Cooperativa
Livreira de Universitários», na página em frente vejo escrito pela
minha mão de então o meu nome e a data em que te adquiri
«24-12-71». Comprei-te para me oferecer como prenda de Natal desse
ano de setenta e um ou como prenda dos meus vinte e um anos feitos
dias antes, talvez fosse os
dois em um.
Por
razões que neste tempo de agora desconheço, suponho que deves ter
passado despercebido aos
censores do lápis azul
ou então foste posto à venda sem eles darem conta. Vejamos, as
fotos são do Eduardo Gageiro, o prefácio de Felicidade Alves,
impresso nas Oficinas Gráficas
do Notícias da Amadora, com
citações de Dom Hélder Camara, Karl Marx, José da Silva e outros,
os poetas são vários cada um com a sua mensagem a condizer com a
fotografia.
Nesse
ano em que te adquiri já sabia que o meu destino seria a guerra,
onde e quando é que ainda não sabia nem
tão pouco imaginava onde estaria no Natal seguinte, já que
com a especialidade de atirador de infantaria não tinha outro
horizonte que não fosse o ir ou o desertar. As cartas estiveram em
cima da mesa. Contudo aderi
ao pensamento que naquele
tempo defendia que deveríamos ir à guerra. Tu
me acompanhaste naquele tempo em que o meu
tempo de vida me foi roubado. Viajaste no fundo da minha mala
juntamente com outros livros proibidos ou amaldiçoados pelos
censores do regime, até te colocar naquelas tábuas que me serviam
de cabeceira para nos
dias em que não andava no mato atrás dos outros que queriam aquela
terra como sua, me fazeres
companhia quando colocava o
corpo sobre a cama e lendo-te viajava no tempo para um outro tempo
que eles me roubaram.
Diz,
Felicidade Alves (que já não era padre) no prefácio deste pequeno
livro:
«Não
nasceu ele, Jesus, nas mansões abastadas de Jerusalém, de Jericó ou
dos arrabaldes elegantes da capital. Nem sequer nasceu na humilde
casinha ou barraca na terra onde residiam seus pais. Eram emigrantes.
As vicissitudes da política imperial forçaram aquele casal a
deslocar-se. E foi como que num bidonville que os braços de Maria
acolheram o menino e o envolveram em paninhos, colocando-o sobre as
palhas da mangedoira dum curral de gado, ali em Belém de Judá. É
que não havia lugar para eles nos albergues ou motéis da vila.
A
contrastar com tão insignificante fenómeno, indiferenciado ou até
menos dramático, do que o de milhares de outros nascimentos de então
e de agora e de sempre, a consciência cristã viu ali um mistério
latente: o estilo inconfundível e programático do Deus-connosco. Os
pastores das redondezas são alertados; os sábios que investigam os
sinais do cosmo pressentem que o universo está a sofrer um singular
estremeção. Acorrem uns e outros, oferecendo cada qual o seu género
de presentes. E atribui-se à intervenção de misteriosos seres
cantares de júbilo, em que se definia o manifesto da mensagem nova,
resumida nesta legenda:
Glória
a Deus em sua transcendência
E
Paz na terra aos homens, pois Deus a todos quer bem.
Aqui
se revela a Esperança e a Aurora dum Mundo Novo. Os primeiros
cristãos acreditavam que tudo iria ser transformado. A Paz e a
Justiça, a Liberdade e o Amor, a Fraternidade e a Igualdade, a
Partilha e a Comunhão – numa palavra, o estilo de Jesus, arauto da
maneira divinamente revolucionária de conceber a Realeza de Deus, à
margem dos cultos sacrais, faria novas todas as coisas!
Assim
disse a fé dos cristãos das origens. Passam séculos. Os actuais
discípulos de Jesus, corporativamente observados, já não são uma
comunidade de irmãos que semeia a Esperança e constrói um
mundo-outro: são uma poderosa organização religiosa, tecnicamente
bem apetrechada com os mais eficazes meios de dominação, que o
Poder, o Ter, o Saber lhe conferem. São uma alavanca do mundo, tal
como Jesus o veio contestar.»
E,
mais coisas diz Felicidade Alves no prefácio deste pequeno livro de
“Poemas de Natal”.
Leio
e releio os diversos poemas que ele contém. Entre as dúvidas de
qual poema escolher se o Natal de Álvaro Feijó ou de António
Gedeão ou de Jorge de Sena ou de Manuel Sérgio ou de Miguel Torga e
outros acabei no poema de Sophia de Melo Breyner Andresen,
A
ESTRELA
Eu
caminhei na noite
E
entre o silêncio e o frio
Só
uma estrela secreta me guiava.
Grandes
perigos na noite me apareceram:
Da
minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira
sendo ela só reflexo
Duma
cidade a néon enfeitada.
A
minha solidão me pareceu coroa.
Sinal
de perfeição em minha fronte.
Mas
vi quando no vento me humilhava
Que
a coroa que eu levava era dum ferro
Tão
pesado, que toda me dobrava.
Do
frio das montanhas eu pensei:
«Minha
pureza me cerca e me rodeia».
Porém
meu pensamento apodreceu
E
a pureza das coisas cintilava
E
eu vi que a limpidez não era eu.
E
a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em
monstruosa voz se transformaram:
Pedi
às pedras do monte que falassem
mas
elas como pedras se calaram
Sòzinha
me vi, delirante e perdida
E
uma estrela serena me espantava.
E
eu caminhei na noite; Minha sombra
De
gestos desmedidos me cercava
Silêncio
e medo
Nos
confins dos desertos caminhavam:
Então
vi chegar ao meu encontro
aqueles
que uma estrela iluminava
E
assim me disseram: «Vem connosco
Se
também vens seguindo aquela estrela»
Então
soube que a estrela me seguia.
Era
real e não imaginada.
Grandes
e humanas miragens nos mostraram
Em
direcções distantes nos chamaram
E
a sombra dos três homens sobre a terra
Ao
lado dos meus passos caminhava.
E
eu espantada vi que aquela estrela
Para
a cidade dos homens nos guiava.
E
a estrela do céu parou em cima
duma
rua sem cor e sem beleza
Onde
a luz tinha o tom que a cinza
Longe
do verde-azul da Natureza.
Ali
não vi as coisas que eu amava
Nem
o brilho do sol nem o da água.
Ao
lado do hospital e da prisão
Entre
o agiota e o templo profanado
Onde
a rua é mais negra e mais sem luz
E
onde tudo parece abandonado
Um
lugar pela estrela foi marcado.
Nesse
lugar pensei: Quanto deserto
Atravessei
para encontrar aquilo
Que
morava entre os homens tão perto.