A
vida é uma corrida. Nascemos no tempo lá longe com os pais a
viverem num quarto alugado.
Pais
que nasceram os dois no mesmo ano no início da década de vinte do
século passado, bem longe da capital e do litoral. A mãe filha de
um guarda fiscal nasceu na Zebreira mas logo se mudaram para
Salvaterra do Extremo onde nasceram depois os seus irmãos e ali fez
a escola primária. Já o pai nasceu em Segura filho de agricultor.
As mães de um e do outro lado trabalhavam cuidando da casa, ambas
tinham a quarta classe. O pai e os irmãos todos foram mandados a
estudar para lá da escola primária. Calhou ao pai não ter sido
mandado para Castelo Branco como os seus outros irmãos, mas sim para
Elvas só que ao ver os portões enormes do seminário resolveu dar
meia volta e voltar para Segura onde foi recebido pelo seu pai, nosso
avô, que lhe disse: - Ai voltaste, não quisestes lá ficar, vais
guardar cabras. Assim começou a vida de trabalho no campo aos 10
anos onde cresceu e se fez respeitar por todos os trabalhadores que
trabalhavam com ele, ao mesmo tempo que nunca se entendeu com seu pai
legionário fervoroso salazarista que gostava mais de andar pelos
hotéis e putas em Castelo Branco do que cuidar dos negócios de sua
casa.
Foi
assim que com a morte da nossa avó muito cedo a casa agrícola do
velho Luís "mouco" entrou em insolvência. O pai e o tio
Chico (os dois que trabalhavam na agricultura) acabaram por entrar na
Guarda Fiscal. O pai, segundo ouvi comentar a pessoas que o
conheceram quer a trabalhar em Segura quer na própria Guarda Fiscal
sempre foi o disciplinador teimoso que nós os dois tivemos a sorte
de conhecermos ao sermos seus filhos. Habituado a mandar na casa
agrícola não se contentava em ser simples praça, ambicionava subir
na hierarquia da própria Guarda Fiscal; estudava os velhos livros
que ainda encontrei alguns lá por casa e ano sim ano sim
apresentava-se a exame interno da guarda. Acabava as provas sempre
confiante de que naquele ano é que era promovido. Com a publicação
das pautas vinha a desilusão com o seu nome a aparecer em lugar não
elegível. Teimoso não desistia e no ano seguinte lá estava
presente em novo concurso. Andava ele nesta vida e já nós os dois
andávamos na escola primária pública dos Olivais a Escola do Sobe
e Desce quase a chegar a Moscavide. Escola abandonada depois de
Abril74.
Embora
nascêssemos no mesmo ano tu és mais velho por teres vindo ao mundo
naquele quarto do número 25 da Rua da Centieira no início de
Janeiro, enquanto que eu cheguei a esta vida nesse mesmo quarto quase
no final desse mesmo ano em Dezembro. Assim entraste para a Escola um
ano antes de mim. Começamos a escola primária nos Olivais e dali
fomos acaba-la em Ferrel, tu na escola nova e eu na escola antiga dos
rapazes. Fizemos o exame da 4 classe e depois o exame de admissão em
Peniche. Entramos na Escola Industrial e Comercial de Peniche, para
onde nos deslocávamos de bicicleta, primeiro de Ferrel e depois do
Lugar da Estrada.
Quando
andavas no primeiro ano do Curso Geral do Comércio chumbaste ,
reprovaste e eu apanhei-te. Os manos passaram a andar juntos até
fazermos o terceiro ano do curso geral do comércio, que equivalia ao
quinto ano ou ao actual nono ano.
Nesse
terceiro ano ou no quinto ano apareceu lá na escola uma professora
para as disciplinas de Contabilidade e Economia Política que ao
chegar ao final do primeiro período não aceitou, segundo constou,
as imposições de notas que a directora Rolanda (salazarista de sete
costados e meio) impôs na defesa dos seus preferidos e deixou-nos.
Apareceu a substituí-la um jovem pouco mais velho que nós que tinha
acabado o curso de contabilista. Foi ele com as suas histórias sobre
o Instituto e o seu jeito de nos ensinar a contabilidade que de certo
modo mudou o rumo do nosso destino. Se não me engano ele era da zona
de Torres Novas, andando sempre com o seu chapéu de chuva na mão.
Não nos deu apenas aulas porque deu-nos lições com o seu jeito de
ensinar. Enamorados pelas histórias e pela contabilidade contadas e
ensinadas, pedimos aos pais para em vez de nos mandarem estudar para
o Magistério Primário nos deixassem ir para o Instituto Comercial.
Como
era uma coisa desconhecida deles escreveram ao primo António que era
licenciado no Instituto Superior de Ciências Económicas e
Financeiras, o que era aquela escola que lhes pedíamos. Sorte a
nossa porque a prima Irene, esposa do nosso primo António Ribeiro
Moreira tinha feito o curso comercial passado pelo Instituto antes de
também se ter licenciado no antigo ISCEF. Quis o destino que anos
mais tarde, já nós lá não andávamos, ela foi substituir no
Instituto Comercial o famoso professor de Calculo Financeiro, Armando
Pereira mais conhecido pelo -2 (menos dois).
Ao
terminarmos o terceiro ano do curso geral do comércio, a directora
Rolanda chumbou-me na prova oral da disciplina Noções de Comércio,
Direito Comercial e Economia Política. Tu, depois de teres chumbado
naquele terceiro ano começaste a pedalar forte nos estudos e assim
enquanto eu fui a exame em Outubro para acabar o curso e passar pela
Patrício Prazeres para fazer a secção e depois o exame de aptidão
ao Instituto, tu passaste o verão a estudar candidataste-te a exame
às várias disciplinas e entraste directamente no Instituto repondo
a ordem natural entre nós. A cada ano que passavas o teu
aproveitamento era sempre melhor do que o do ano anterior. Acabaste o
curso de contabilista trabalhaste um ano na ENI estudando à noite
para te candidatares
ao então ainda ISCEF no velho Quelhas. Lembro-me daquela noite em
que saíram as pautas dos exames com uma multidão de jovens
atropelando-se querendo
chegar junto das vitrines para matar a ansiedade do resultado do
exame. Eu mais alto do que tu e do que muitos naquele tempo consegui
lá chegar e ver
que tinhas dispensado da oral com a nota de geografia a ajudar a nota
de matemática. Iniciavas
assim uma outra etapa, estudar na Universidade num tempo onde as
ideias e os ideais políticos fervilhavam
na mente dos estudantes que ambicionavam
por um outro regime que não aquele que nos acorrentada as pernas e
as
ideias.
Acabado
o Instituto segui estudando sozinho para procurar fazer o exame do
sétimo ano e poder seguir também para o ISCEF. Não consegui
contudo passar na disciplina de Filosofia quer em Junho quer em
Outubro e lá segui para Mafra para a Escola Prática de Infantaria
com a esperança de me darem a especialidade de contabilidade e
pagadoria
ou intendência
que normalmente o pessoal do Instituto Comercial obtinha. Quis a
sorte ou o destino que naquele tempo a malta com o curso completo
fosse para operacionais de G3 e aqueles que tinham o curso incompleto
por lhes faltar algumas cadeiras ou o último ano fossem para
intendência. Acaso estranho
mas foi a realidade. Os
sonhos de fazer a tropa e poder estudar à noite ficaram adiados. De
Mafra para Chaves passando por Viana do Castelo a caminho de dois
anos a endurecer nas matas do leste e
norte de Angola.
Nesse
tempo em que vivemos separados tu continuaste a tua carreira de bom
aluno. Logo no primeiro ano te inclinaste para a matéria da
disciplina de Moeda indo até à Biblioteca Nacional onde procuravas
estudar sobre o tema. Eu resistia como podia naquela guerra inglória
na defesa mais das vidas humanas que o sistema hipócrita me tinha
confiado do que propriamente na defesa do Império que só existia na
mente dos salazaristas e seus irmãos siameses da igreja católica
apostólica romana.
Corria
o ano de setenta e quatro quando depois de uma tentativa falhada
denominada golpe das Caldas, ocorre o 25 de Abril libertador das
mentes e das correntes que mantiveram o país num atraso económico e
social de quase meio século. Entre o sonho e a utopia libertaram-se
presos políticos e as mentes deixaram as amarras de que as paredes
tinham ouvidos e vieram para a rua cantar, sonhar o sonho lindo,
viver estados pré utópicos. As ruas e as gentes encheram-se de cor.
Nesse
tempo da Liberdade eufórica da descoberta de tantas e tantas poucas
vergonhas, pequenas e grandes corrupções que a censura e o regime
salazarista-cerejeira encobria na salvaguarda dos bons costumes das
pobres gentes cientes de que a salvação da alma exigia viverem na
triste pobreza
sem outros horizontes,
no Comando Geral da Guarda Fiscal o tio Chico teve acesso aos
arquivos das notas que saiam do júri dos exames a que o pai se tinha
submetido. Pautas bem diferentes das que oficialmente o regime
corrupto dos
falsos bons costumes mandava
publicar. Nas classificações do júri dos exames internos a pior
classificação que o pai obteve foi o quinto lugar no mesmo ano em
que nas listas mentirosas mas oficiais foi promovido a segundo cabo e
mandado para o posto de Porto Novo no Vimeiro
de onde saiu para assumir o Posto do Baleal e irmos todos viver para
Ferrel. Quando me lembro
destas injustiças ao mesmo tempo que a revolta aflora penso na velha
canção «pode alguém ser quem não é».
Também
tu querias ficar a dar aulas de
métodos quantitativos no Quelhas, mas felizmente para ti os
“vendilhões” do MES que na altura lá pontificavam não o
permitiram, rumando assim a
Coimbra para dares aulas na
nova Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Disse
felizmente porque assim rumaste a Coimbra que era mais perto do que o
Porto onde também te queriam e lá nas margens do Mondego
encontraste a tua companheira de todas as horas de todos os momentos
que ao longo deste teu percurso sempre ascendente sempre esteve a teu
lado, também ela excelente professora e orientadora segundo
comentários de antigos alunos vossos que fui e vou encontrando nesta
cidade grande que é Lisboa. Para a Adelaide Duarte também não só
o meu grande abraço como o meu reconhecimento, porque mano aqui que
ninguém nos ouve não é fácil aturar todas as tuas manias.
Ao
acabares o teu percurso académico irás ficar mais livre para os
teus hobies na certeza minha de que irás continuar a estudar, a
investigar e a publicar os teus artigos de opinião para nos
intervalos continuares a ser um agricultor amador e teimoso dentro
das tuas paredes.
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