segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

A vida é uma corrida


A vida é uma corrida. Nascemos no tempo lá longe com os pais a viverem num quarto alugado.
Pais que nasceram os dois no mesmo ano no início da década de vinte do século passado, bem longe da capital e do litoral. A mãe filha de um guarda fiscal nasceu na Zebreira mas logo se mudaram para Salvaterra do Extremo onde nasceram depois os seus irmãos e ali fez a escola primária. Já o pai nasceu em Segura filho de agricultor. As mães de um e do outro lado trabalhavam cuidando da casa, ambas tinham a quarta classe. O pai e os irmãos todos foram mandados a estudar para lá da escola primária. Calhou ao pai não ter sido mandado para Castelo Branco como os seus outros irmãos, mas sim para Elvas só que ao ver os portões enormes do seminário resolveu dar meia volta e voltar para Segura onde foi recebido pelo seu pai, nosso avô, que lhe disse: - Ai voltaste, não quisestes lá ficar, vais guardar cabras. Assim começou a vida de trabalho no campo aos 10 anos onde cresceu e se fez respeitar por todos os trabalhadores que trabalhavam com ele, ao mesmo tempo que nunca se entendeu com seu pai legionário fervoroso salazarista que gostava mais de andar pelos hotéis e putas em Castelo Branco do que cuidar dos negócios de sua casa.
Foi assim que com a morte da nossa avó muito cedo a casa agrícola do velho Luís "mouco" entrou em insolvência. O pai e o tio Chico (os dois que trabalhavam na agricultura) acabaram por entrar na Guarda Fiscal. O pai, segundo ouvi comentar a pessoas que o conheceram quer a trabalhar em Segura quer na própria Guarda Fiscal sempre foi o disciplinador teimoso que nós os dois tivemos a sorte de conhecermos ao sermos seus filhos. Habituado a mandar na casa agrícola não se contentava em ser simples praça, ambicionava subir na hierarquia da própria Guarda Fiscal; estudava os velhos livros que ainda encontrei alguns lá por casa e ano sim ano sim apresentava-se a exame interno da guarda. Acabava as provas sempre confiante de que naquele ano é que era promovido. Com a publicação das pautas vinha a desilusão com o seu nome a aparecer em lugar não elegível. Teimoso não desistia e no ano seguinte lá estava presente em novo concurso. Andava ele nesta vida e já nós os dois andávamos na escola primária pública dos Olivais a Escola do Sobe e Desce quase a chegar a Moscavide. Escola abandonada depois de Abril74.
Embora nascêssemos no mesmo ano tu és mais velho por teres vindo ao mundo naquele quarto do número 25 da Rua da Centieira no início de Janeiro, enquanto que eu cheguei a esta vida nesse mesmo quarto quase no final desse mesmo ano em Dezembro. Assim entraste para a Escola um ano antes de mim. Começamos a escola primária nos Olivais e dali fomos acaba-la em Ferrel, tu na escola nova e eu na escola antiga dos rapazes. Fizemos o exame da 4 classe e depois o exame de admissão em Peniche. Entramos na Escola Industrial e Comercial de Peniche, para onde nos deslocávamos de bicicleta, primeiro de Ferrel e depois do Lugar da Estrada.
Quando andavas no primeiro ano do Curso Geral do Comércio chumbaste , reprovaste e eu apanhei-te. Os manos passaram a andar juntos até fazermos o terceiro ano do curso geral do comércio, que equivalia ao quinto ano ou ao actual nono ano.
Nesse terceiro ano ou no quinto ano apareceu lá na escola uma professora para as disciplinas de Contabilidade e Economia Política que ao chegar ao final do primeiro período não aceitou, segundo constou, as imposições de notas que a directora Rolanda (salazarista de sete costados e meio) impôs na defesa dos seus preferidos e deixou-nos. Apareceu a substituí-la um jovem pouco mais velho que nós que tinha acabado o curso de contabilista. Foi ele com as suas histórias sobre o Instituto e o seu jeito de nos ensinar a contabilidade que de certo modo mudou o rumo do nosso destino. Se não me engano ele era da zona de Torres Novas, andando sempre com o seu chapéu de chuva na mão. Não nos deu apenas aulas porque deu-nos lições com o seu jeito de ensinar. Enamorados pelas histórias e pela contabilidade contadas e ensinadas, pedimos aos pais para em vez de nos mandarem estudar para o Magistério Primário nos deixassem ir para o Instituto Comercial.
Como era uma coisa desconhecida deles escreveram ao primo António que era licenciado no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, o que era aquela escola que lhes pedíamos. Sorte a nossa porque a prima Irene, esposa do nosso primo António Ribeiro Moreira tinha feito o curso comercial passado pelo Instituto antes de também se ter licenciado no antigo ISCEF. Quis o destino que anos mais tarde, já nós lá não andávamos, ela foi substituir no Instituto Comercial o famoso professor de Calculo Financeiro, Armando Pereira mais conhecido pelo -2 (menos dois).
Ao terminarmos o terceiro ano do curso geral do comércio, a directora Rolanda chumbou-me na prova oral da disciplina Noções de Comércio, Direito Comercial e Economia Política. Tu, depois de teres chumbado naquele terceiro ano começaste a pedalar forte nos estudos e assim enquanto eu fui a exame em Outubro para acabar o curso e passar pela Patrício Prazeres para fazer a secção e depois o exame de aptidão ao Instituto, tu passaste o verão a estudar candidataste-te a exame às várias disciplinas e entraste directamente no Instituto repondo a ordem natural entre nós. A cada ano que passavas o teu aproveitamento era sempre melhor do que o do ano anterior. Acabaste o curso de contabilista trabalhaste um ano na ENI estudando à noite para te candidatares ao então ainda ISCEF no velho Quelhas. Lembro-me daquela noite em que saíram as pautas dos exames com uma multidão de jovens atropelando-se querendo chegar junto das vitrines para matar a ansiedade do resultado do exame. Eu mais alto do que tu e do que muitos naquele tempo consegui lá chegar e ver que tinhas dispensado da oral com a nota de geografia a ajudar a nota de matemática. Iniciavas assim uma outra etapa, estudar na Universidade num tempo onde as ideias e os ideais políticos fervilhavam na mente dos estudantes que ambicionavam por um outro regime que não aquele que nos acorrentada as pernas e as ideias.
Acabado o Instituto segui estudando sozinho para procurar fazer o exame do sétimo ano e poder seguir também para o ISCEF. Não consegui contudo passar na disciplina de Filosofia quer em Junho quer em Outubro e lá segui para Mafra para a Escola Prática de Infantaria com a esperança de me darem a especialidade de contabilidade e pagadoria ou intendência que normalmente o pessoal do Instituto Comercial obtinha. Quis a sorte ou o destino que naquele tempo a malta com o curso completo fosse para operacionais de G3 e aqueles que tinham o curso incompleto por lhes faltar algumas cadeiras ou o último ano fossem para intendência. Acaso estranho mas foi a realidade. Os sonhos de fazer a tropa e poder estudar à noite ficaram adiados. De Mafra para Chaves passando por Viana do Castelo a caminho de dois anos a endurecer nas matas do leste e norte de Angola.
Nesse tempo em que vivemos separados tu continuaste a tua carreira de bom aluno. Logo no primeiro ano te inclinaste para a matéria da disciplina de Moeda indo até à Biblioteca Nacional onde procuravas estudar sobre o tema. Eu resistia como podia naquela guerra inglória na defesa mais das vidas humanas que o sistema hipócrita me tinha confiado do que propriamente na defesa do Império que só existia na mente dos salazaristas e seus irmãos siameses da igreja católica apostólica romana.
Corria o ano de setenta e quatro quando depois de uma tentativa falhada denominada golpe das Caldas, ocorre o 25 de Abril libertador das mentes e das correntes que mantiveram o país num atraso económico e social de quase meio século. Entre o sonho e a utopia libertaram-se presos políticos e as mentes deixaram as amarras de que as paredes tinham ouvidos e vieram para a rua cantar, sonhar o sonho lindo, viver estados pré utópicos. As ruas e as gentes encheram-se de cor.
Nesse tempo da Liberdade eufórica da descoberta de tantas e tantas poucas vergonhas, pequenas e grandes corrupções que a censura e o regime salazarista-cerejeira encobria na salvaguarda dos bons costumes das pobres gentes cientes de que a salvação da alma exigia viverem na triste pobreza sem outros horizontes, no Comando Geral da Guarda Fiscal o tio Chico teve acesso aos arquivos das notas que saiam do júri dos exames a que o pai se tinha submetido. Pautas bem diferentes das que oficialmente o regime corrupto dos falsos bons costumes mandava publicar. Nas classificações do júri dos exames internos a pior classificação que o pai obteve foi o quinto lugar no mesmo ano em que nas listas mentirosas mas oficiais foi promovido a segundo cabo e mandado para o posto de Porto Novo no Vimeiro de onde saiu para assumir o Posto do Baleal e irmos todos viver para Ferrel. Quando me lembro destas injustiças ao mesmo tempo que a revolta aflora penso na velha canção «pode alguém ser quem não é».
Também tu querias ficar a dar aulas de métodos quantitativos no Quelhas, mas felizmente para ti os “vendilhões” do MES que na altura lá pontificavam não o permitiram, rumando assim a Coimbra para dares aulas na nova Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Disse felizmente porque assim rumaste a Coimbra que era mais perto do que o Porto onde também te queriam e lá nas margens do Mondego encontraste a tua companheira de todas as horas de todos os momentos que ao longo deste teu percurso sempre ascendente sempre esteve a teu lado, também ela excelente professora e orientadora segundo comentários de antigos alunos vossos que fui e vou encontrando nesta cidade grande que é Lisboa. Para a Adelaide Duarte também não só o meu grande abraço como o meu reconhecimento, porque mano aqui que ninguém nos ouve não é fácil aturar todas as tuas manias.
Ao acabares o teu percurso académico irás ficar mais livre para os teus hobies na certeza minha de que irás continuar a estudar, a investigar e a publicar os teus artigos de opinião para nos intervalos continuares a ser um agricultor amador e teimoso dentro das tuas paredes.


Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.