09. 04.
22
Deitou-se
cedo. Nem se lembra de como começou a dormir. Terá sido, tiro e
queda. Ontem ao deitar fechou as portadas das janelas. A meteorologia
anunciava chuva para a madrugada. Quando o corpo deu sinal,
levantou-se. Tudo ainda era escuro. A Sacha dormindo na sua cama. Foi
à casa de banho e ao voltar, olhou no escuro as horas no telemóvel.
Eram 4H40. Deitou-se na esperança de dormir um pouco mais. Ao
virar-se sobre o lado esquerdo lá estava na Avenida da Liberdade o
sorriso dela, quando a ia esperar para de braço dado subirem a
Calçada da Glória. Naquele tempo não se saudavam com beijo (que
nunca trocaram). O sorriso dos olhos dela era a luz que os iluminava.
Procurou afastar o seu sorriso em busca de mais umas horitas de sono.
Não conseguiu. Automaticamente fez contas, já tinha dormido seis
horas. Ia ser difícil voltar a adormecer. Virou-se para o lado
direito e lá vinha ela da Rua das Pretas ao seu encontro na Avenida
da Liberdade.
Depois,
com a sua companhia ausente, acordado na madrugada deu voltas à
vida, ao que foi e ao que é, sempre à volta do que poderiam ter
sido. Ela não ia ser feliz. Naquele tempo em que a revolta contra a
sociedade brotou qual lava dentro de si, não teve coragem de lhe
falar, abandonando-a sem explicação. Passados mais de cinquenta
anos o seu sorriso continua a acompanha-lo e ele continua a sua
revolta, desenquadrado, tresmalhado do rebanho, num viver solitário
contra o mundo, contra esta sociedade consumista que agora o brinda
com um quase pensamento único, por causa da maldita guerra que se
desenvolve lá na Ucrânia. Um mundo composto de multidões que se
recusam a pensar nos porquês, que por comodismo aceitam como
verdade-única o que as televisões lhes dizem e mostram, nas quais
não se enquadra. Sabe que não tem o dom da verdade relativa, quanto
mais o da verdade absoluta, mas enquanto puder recusa-se a deixar de
pensar, a deixar de procurar entender o que não dizem ou o que
escrevem nas entrelinhas das meias verdades que podem ser meias
mentiras. É um ser inquieto, composto por uma montanha de dúvidas
que à medida que o planeta roda vão crescendo dentro de si.
Ali
está sozinho fisicamente. Na casa que seus pais construíram com
muito sacrifício. Casa pequena, sem luxos nem materiais de primeira
qualidade, que vai adaptando à medida das suas possibilidades, para
que, não só ele mas eles, em especial, possam ver como a a casa
deles está cuidada. Sim, acredita que o espírito não morre na hora
do desapego em que a água seca no nosso corpo e a morte é
oficialmente declarada. Não precisa, já não sente necessidade das
religiões; todas elas não gostam de quem acredita que o espírito
não morre, podendo vir a encarnar de novo. Até nisso navega contra
a corrente da grande maioria, que religiosamente só pedem e põe nas
mãos de Deus aquilo que aos humanos compete.
10.04.22
Cá
estou de novo, escreve nos seus apontamentos. Mais ou menos à hora
certa o seu corpo da sinal, num jogo entre si e o despertador do
telemóvel, a ver quem é o primeiro a dar sinal.
Esta
noite não fechou as portadas da janela do seu quarto. Gosta de
acordar e sentir os raios diurnos a anunciarem-se. Porque gosta das
madrugadas em vez das noitadas? Pensa para si em silêncio.
Ontem,
sábado, passou o dia a arranjar um borrego que os senhores que
utilizam os chões para as suas ovelhas e dois ou três cavalos, lhe
ofereceram. Gente que lhe parece ser séria e a quem em tempo tinha
dito se não lhe vendiam um borrego um pouco maior do que os que
vendem nos supermercados. Afinal, trouxeram-lhe um bem grande que
mais parecia já um carneiro. Passou o dia todo a arranjá-lo para o
limpar das gorduras excessivas e do bedum (a pequena glândula que
têm nas patas traseiras). As coisas que foi aprendendo quando os
seus pais foram para lá viver após o seu pai se reformar da Guarda
Fiscal. Até a sua mãe ter saúde, antes do AVC que a deixou
incapacitada do lado direito, criavam coelhos, galinhas, patos,
ovelhas e porco. Hoje, já não era capaz de matar um animal, mas
nesses anos aprendou quase tudo, sendo que os borregos e o porco era
ele que os desmanchava. As coisas que já fez, pensa para si na
conversa que mantém com a ausência. Mas ao recordar escreve, toma
nota, neste novo dia em que os ramos da velha oliveira lá fora não
mexem. Pede desculpa. É a necessidade que todos os dias sente em
falar, de lhe contar as suas tolices. Tolices de uma loucura que
lentamente vai tomando conta de si silenciosamente. Ninguém sabe,
ninguém nota, nem as análises e os exames clínicos denunciam. Só
ele e a sua sombra, sabem, conhecem. Às vezes pensa, que tudo isto
que vive é uma nova emboscada que a morte vem montando, ela que já
por duas vezes se lhe anunciou. À terceira talvez seja de vez, quem
saberá?
Sentado
na cama olha o relógio. Já são sete horas. Hoje na tradição
cristã ou do calendário litúrgico cristão apostólico romano é
Domingo de Ramos. Que necessidade tem para se levantar tão cedo?
Hábitos que criou. É assim todos os dias, seja domingo, feriado ou
dia de semana. A Sacha à entrada do quarto olha-o como que
dizendo-lhe que está na hora de irem esticar as pernas. Assim começa
todos os dias em que se recuso a viver como se o dia fosse o seu
último dia de vida, em oposição, vive cada dia como se fosse o
primeiro dia do resto da sua vida.
Depois
da volta matinal que os dois fizeram, escreveu e publicou na sua
página da rede social que frequenta:
«O
dia chegou e com ele ainda predominava o nevoeiro, que não sendo
cerrado era intenso. Andando com a minha amiga pelas quelhas
habituais não vislumbrei entre oliveiras e azinheiras a chegada do
louco El-rei D. Sebastião. Já antes de sair ao olhar as páginas
dos jornais, não tinha lido nem visto notícias da tão desejada
Paz. Só a guerra, a sua difusão numa interpretação de pensamento
único, futebol ou artistas da bola e mais alguma violência urbana e
doméstica.
Um
dia, domingo de ramos segundo o calendário litúrgico dos cristãos,
onde o nevoeiro se nos apresentou com o seu "Bom dia, Bom
domingo" »
Está quase no quintal a acabar de almoçar e na sua loucura silenciosa a
falar com quem está ausente. É assim, mas não se pode queixar.
Quem semeia ventos colhe tempestades ou cá se fazem cá se pagam ou
ainda como disse num dia um político manhoso, "é a vida".
No
telheiro que transformou em marquise, almoça vendo a estrada
nacional mas o que maior prazer lhe dá é observar a passarada nas
suas danças nas suas falas. Andam dois machos pintassilgo no quintal
em busca de material para o ninho. A sua memória voa mais rápida
que a velocidade da luz, até Ferrel no seus oito ou nove anos,
quando aprendeu a armar aos pássaros. Não se lembro onde e como
comprou as ratoeiras. Lembra-se de às escondidas da mãe, ele e o irmão, apanharem as galinhas para lhes roubar penas do rabo e
com elas enganar os pássaros na ânsia de fazerem o ninho para de
novo procriarem. O primeiro desgraçado que apanhou na ratoeira,
aquando das férias da Páscoa, foi um pintassilgo, uma das aves mais
bonitas quer na cor da sua plumagem, quer no chilrear, que é de
todos os cantos o que mais gosta de ouvir. Teve um durante anos, que
o acompanhava com o seu chilrear nas madrugadas em que se levantava
para estudar. Nesse tempo conheceu-a e logo começou a gostar dela.
Lembra-se como a chamavam no primeiro ano do ICL. Conhece o canto do
pintassilgo à distância, ficando imobilizado ao ouvi-los nas suas
sinfonias celestiais em liberdade. Hoje era incapaz de os prender
numa gaiola.
Bebeu
mais um copo do seu licor de poejo. Gosta de aromas fortes, onde o
poejo selvagem tem lugar de preferência. Nestas terras do interior
raiano de Idanha-a-Nova tudo, mas tudo, tem um outro sabor, um outro
cheiro, um outro paladar.
Almoçou
uma fritada de carne com uma salada de alface, tomate, cebola nova e
coentros, acompanhado com um "Post Scriptum" do Douro 2014,
terminando com um café e vários copinhos de licor de poejo
fresquinho que fez no verão passado.
Ninguém
no mundo dos vivos, a não ser ele próprio, sabe a felicidade que
sente ao almoçar ali no seu quintal, frente à estrada nacional onde
passam carros e camiões para e de Espanha. É um sentimento de
Liberdade único, uma Paz, que até pode ser considerada egoísta
face ao que acontece em especial ao povo desgraçado lá pela
Ucrânia.
11.04.22
Bom
dia, diz saudando todos os seus ausentes. Abriu a portada da janela
para ver o clarear do dia que segundo os especialistas nas questões
do tempo será de chuva. A Sacha já está aos pés da cama, fazendo
a sua manicura às patas. Já olhou e inspecionou as mesmas, mas não
viu nada de errado. A Sacha, pastora alemã com quatro anos, é um
animal de muita força, impulsivo e de caráter dominante. Tem dias
em que se cansa e quase se arrepende de a ter ido buscar à senhora
que estava a doar os cachorros de uma ninhada. A senhora é advogada
em Lisboa. não tendo vida para cuidar da ninhada que nasceu por
descuido ou não, pouco importa, decidiu doar as crias. Passou a
viver consigo desde as quase oito semanas de vida. Com o seu caráter
dominante, às vezes deve pensar que é ele que vive com ela e não
o contrário. Livremente condiciona a sua vida, para onde vai leva-a.
Se não a pode levar, não vai simplesmente.
Continua,
sem perceber o mundo que o rodeia. A guerra na Ucrânia veio agravar
a sua relação com a maioria. Recusa-se a ser juiz, a decidir que,
de um lado estão os maus e do outro estão os bons. Certo, que
invadir um país vizinho é um presumível crime difícil de imaginar
antes da invasão se dar. Todavia, todas as guerras têm os seus
porquês, as suas causas, umas mais próximas que outras. Não vê
que nenhum dos líderes em litígio direto e indireto, seja o tal
lado bom apregoado em uníssono pela comunicação social ocidental.
Numa guerra, qualquer que ela seja, nunca os inimigos dizem e emitem
notícias verdadeiras. Hoje mais do que nunca, jogam com a
comunicação, com as emoções das fotos, dos vídeos, das ditas
reportagens em direto. Tudo para iludirem os espetadores na escolha
do bom contra o mau. Não joga nesse jogo.
Vê
com tristeza a promoção que se faz a um líder político que pouco
ou nada tem de bom. Um sujeito comediante que chegou a líder
mantendo e apoiando milícias privadas defensoras da raça pura
ariana ucraniana, que ao longo dos últimos anos massacraram,
violaram, mataram, quem eles acham que são impuros, animais
inferiores na sua versão ariana, e, não foram só russos também
judeus, roma e gays. Não pode concordar que esse sujeito seja
considerado o bom, o novo herói do chamado mundo ocidental, porque
do outro lado está o mau, o czar ditatorial russo que todos
conhecemos há anos. Para ele, ambos são maus exemplares da raça
humana. Ambos não gostam da Democracia criada com o 25 de Abril
português. Ambos os líderes não prestam.
15.04.22
Voltou
para os arrabaldes da cidade grande na terça. Segunda e terça foi
chovendo por lá. Fez parte da viagem debaixo de chuva. A ausência
seguia no banco ao seu lado. É a sua loucura, o seu segredo, o saber
viver que foi aprendendo com os erros que cometeu ao longo da sua
caminhada. Pensa que não foram muitos, mas de todos os erros só um
lhe pesa na sua consciência de um modo diferente, num sentir que com
o tempo vem ficando mais pesado mais dorido sem sarar.
Hoje,
quinze de Abril é um dia em que os seus olhos deveriam transmitir
alegria, felicidade e não a tristeza vazia que sente no peito. De
manhã fez e ajudou na cozinha. Gosta de comer, de fazer coisas
diferentes do usual de todos os dias de todas as semanas. Gosta de
ervas vegetais. Trouxe do seu quintal algumas favas e algumas
ervilhas que plantou. Com elas preparou um prato de vários vegetais
aos quais juntou um pouco se soja granulada. Já tem jantar para
vários dias. Para o almoço apetecia-lhe um arroz de grelos (que
trouxe de lá) para acompanhar uma ou duas postas de pescada do Cabo,
frita. E, assim fez. Coisas simples. Dizem que o peixe frito faz mal
à saúde, assim como nos dizem tantas outras coisas que se dermos
ouvidos não saberemos o que comer, o que fazer. Já não terá
muitos anos pela frente, pelo que irá procurar comer o que gosta e
lhe dá prazer, com moderação, porque quer abater alguns quilos ao
seu peso. Outro dia, pesou-se e assustou-se com os noventa e cinco
quilos dados pela balança. A vida sedentária que leva nos
arrabaldes da cidade grande é terrível. Depois, sempre foi e
continua sendo um indisciplinado em ganhar rotinas que lhe façam
bem. Inscreveu-se na natação. Veio o vírus e não mais lá voltou.
Comprou uma bicicleta, mas com a cadela deixou de andar de bicicleta
logo pela manhã, depois com o transito de hoje sente receio em andar
na estrada.
Bem,
mas hoje é o dia de aniversário da sua neta mais nova, a Luísa.
Faz sete anos. Teve a sua festa com os seus amigos lá de Torres
Vedras. Tem uma outra neta com treze anos. Maria, irmã mais velha da
Luísa, que foi disputar no norte do país um torneio de vólei para
o qual a sua equipa foi convidada.
Da
filha mais velha, tem um neto que é o mais novo dos três. Fará os
seus sete anos no mês de Julho. Nasceu no Rio de Janeiro. Os pais
estavam lá a trabalhar com emigrantes.
17.04.22
Já
leva uma hora acordado. O relógio da entrada deu as 6H30. Andou
vendo as capas dos jornais, olhou depois as ditas redes sociais. Nada
de novo lhe disseram.
Hoje
é Domingo de Páscoa. A cada ano a margem por onde caminha e navega
se encontra mais afastada destas celebrações. Este ano teve
momentos em que olhar vídeos sobre as tradições litúrgicas
cristãs, chegou a sentir uma ponta de medo. A religiosidade é
trampolim para fanatismos e vaidades. Sempre assim foi, mas com a
guerra o pensamento único que domina a sociedade refletiu-se também
nas celebrações cristãs católicas.
Medo
que gerou em si a dúvida ou foi esta que gerou o medo, não sabe.
Sabe que chegou a ter medo. Caminha-se correndo num retrocesso
civilizacional, quando a maioria se deixa levar por mentes bem
falantes mas perigosas nos seus desígnios, na escolha de quem são
os bons e quem são os maus, não se anunciam tempos de aceitação e
de concórdia. Foge desta forma de ver a vida, onde a pensamento
único dominante sobre a guerra, se junta à presumível história
cristã sobre a morte de Jesus. Historia criada a mando, para a
construção e consolidação da religião, que da morte de Jesus
criou a imagem de um Cristo morto e crucificado pelos maus (os
judeus), ponto final.
Já
há dois anos, neste dia de Páscoa lhe escreveu e guardou.
Esta
sua loucura tem raízes de há longo tempo. Loucura silenciosa que
não deixa de crescer lenta e silenciosamente. Não sabe se terá
forças para bater à porta, tocar a campainha, para cara a cara lhe
pedir desculpa do que lhe fez há mais de cinquenta anos. Tem medo de
lhe causar problemas agora, quando no outro tempo de então não
pensou ou se recusou a pensar sem se importar com a dor o sofrimento
com os problemas que lhe causou ou agudizou. Sofrimento, remorso que
neste tempo de agora vai alimentando a sua silenciosa loucura que
ninguém vê, ninguém sabe, que nem os exames e análises clínicas
denunciam, só ele e a sua sombra sabem do seu progresso silencioso.
Não
quer terminar a sua viagem terrena sem lhe pedir desculpa, perdão
pelo que um dia lhe fez, ao deixa-la sem uma palavra, sem uma
explicação do porquê, se era dela que ele gostava era ela que ele
amava, levando consigo a luz do seu sorriso, que ainda nesta Páscoa
de 2022 perdura.
Há
vidas que são histórias que nem parecem ser verdadeiras.