segunda-feira, 18 de abril de 2022

22.03.28


Carta às filhas.

Elas sabem que o pai por aquilo que lhes vai enviando sobre a invasão da Rússia à Ucrânia, mais uma vez o pai delas não alinha no rebanho do pensamento único. Qualquer guerra tem sempre pelo menos dois lados. Lados que omitem a verdade divulgando contínua contrainformação na tentativa de enganar os outros, sejam inimigos em confronto ou simples cidadãos que seguem os acontecimentos. As imagens e os comentários televisivos da guerra são outra coisa, outra guerra que pelas emoções que as imagens carregam querem conquistar audiências, sem se preocuparem com as causas do sofrimento, que ucranianos em geral e alguns russos estão a sofrer.

Sabe isso pela prática que viveu na guerra em Angola, não toma partido por nenhum dos lados em confronto na Ucrânia. O seu partido é a Paz e a Solidariedade com todos os inocentes que sofrem os efeitos da maldita guerra.

A guerra é o exercício da política pelos meios mais violentos, há naquela guerra de um lado e do outro milícias privadas armadas de pensamento ariano ostentando símbolos nazis e fascistas e subsidiadas pelos governos dos dois lados. Assim sendo, ele não pode tomar partido por gente que financia essas milícias nazis. Depois há os outros cujos interesses naquela guerra são evidentes, mas como consta que Pilatos um dia lavou as mãos, aparecem nas televisões com discursos incendiários a picarem os desgraçados dos ucranianos para guerra prometendo o que não lhes podem dar a não ser armas e munições para que hoje lutem e morram até que um dia alguém terá de pagar todo o arsenal militar fornecido.

Esta guerra tem-lhe provocado lembranças que estavam guardadas nas suas gavetas cerebrais. Lembranças, memórias da sua guerra das quais nunca falou às filhas. Nem todas são boas, também fez coisas que não são bem vistas nos dias que correm. Coisas que guarda nas suas gavetas de lembranças.

Embarcou para a guerra contrariado, um pouco levado pelo pensamento da oposição mais séria ao regime ditatorial de Salazar-Caetano que mantinha em África uma guerra sem sentido desde que ele tinha nove anos. Oposição que, quando ingressou aos 20 anos no serviço militar obrigatório, aconselhava a não desertar, a irem à guerra tentando consciencializar os outros da injustiça da mesma e do regime. Por outro lado o facto de ser mobilizado para Angola também ajudou à aceitação de ir para a guerra porque era onde os movimentos independentistas que lutavam contra nós, estavam mais fragilizados; eram três mas não se entendiam entre si, guerreando-se entre eles. Uma guerra que depois de 13 anos acabou com milhares de mortos dos dois lados, com milhares de deficientes e no fim da mesma com tanto sofrimento não houve vencedores.

Em Mafra deram-lhe a especialidade de Atirador de Infantaria, quando a grande maioria dos jovens com o curso ou frequência do curso de Contabilista iam para a especialidade de intendência ou contabilidade e pagadoria. De Mafra seguiu já como oficial miliciano para Chaves, que na altura ficava muito longe de Lisboa. Em Chaves foi mobilizado para a guerra.

O Batalhão de Caçadores, onde foi integrado na 2ª Companhia, teve como destino o leste mais interior de Angola, às portas das terras do fim do mundo. A sua companhia, chegou no dia em que completava 22 anos ao Mumbué, tinha estrada asfaltada a ligá-la às cidades de Silva Porto, hoje Bié, e Serpa Pinto, hoje Menongue. A vida corria, ora no arame farpado ora em muitas operações de três e cinco dias a andar no mato kms e kms, a comer intragáveis rações de combate, a participar em base táticas longe da companhia onde comeu carne podre com massa porque não havia mais nada para cozinhar, depois de numa primeira base ter comido arroz temperado com gasóleo e salsichas. A tudo, ele e os seus homens resistiram sem apanhar doenças.

Os pides (polícia internacional de defesa do estado) que tinham um grupo armado, os chamados Flechas, viviam num lugar, quimbo, perto do Mumbué onde a sua companhia, era assistida pelo médico da CCS, companhia de comando e serviços (os sortudos que pouco ou nada faziam em operações, constituída por especialistas de transmissões, mecânicos-auto, minas e intendência). Um dia no final do primeiro terço da estadia em Angola o Major, segundo comandante do Batalhão, chamou-o à CCS, aproveitando o facto de a oficialada estar toda em Silva Porto. Meteu-se no "jipe wills" da segunda guerra e lá foi com o condutor à presença do Major. Quando chegaram à CCS e passaram a porta de armas não viram ninguém a não ser o Major que na porta da messe dos oficiais o esperava, mandando-o logo entrar conduzindo-o até ao seu gabinete, certificando-se que não havia ninguém por perto. Ele tremia, o sangue como que fugia das veias sem entender o que se passava. Pior ficou quando viu livros que tinha levado e guardado no fundo da sua mala em cima da secretária do sr. Major. Gelado aguardava com o coração na boca o que o sr. Major lhe ia dizer. Este mandou-o sentar e sentou-se de frente na sua cadeira. Disse-lhe que chamou-o porque eles, CCS, tinham conhecimento de que eles na 2 Companhia se andavam a cortar não indo aos objetivos definidos para cada operação, para terem muita atenção e cumprirem as ordens como eram dadas; para ele em especial ter cuidado porque o médico era um PIDE informador que o queria foder. Para ele ter muita mas muita atenção ao que fazia; que ele, Major, tinha ido ao seu quarto mexer nas suas coisas e retirado os livros. Não lhe devolvia "Os Princípios Fundamentais da Filosofia" porque ainda o andava a ler e estudar mas para ter muito cuidado com os outros livros que lhe devolvia. De seguida mostrou-lhe o seu pequeno ginásio de peso e halteres, acompanhando-o até à saída da messe. Tomou o jipe e voltaram ele o condutor para o Mumbué, sendo que o condutor por várias vezes lhe perguntou se estava tudo bem. Era um condutor amigo que ele tinha conseguido livrar de prisão efetiva atrás das grades, pela forma como escreveu e reescreveu o “auto corpo delito” em que procurou dar a volta à verdade, a fim de amenizar a pena, porque presos já eles estavam naquele lugar rodeado de arame farpado. O condutor era o culpado do acidente com civis que resultou na incapacidade de uma rapariga. Na altura fez o que lhe pareceu ser o melhor para o jovem condutor que como ele viviam aquela prisão do arame farpado da guerra. Hoje voltaria a fazer o mesmo? Recusa-se a responder a si próprio, guardando a memória no fundo da gaveta. Ele era o alferes que na companhia também desempenhava funções para a Justiça Militar. Manteve-se calado durante os mais de 40 km que a sede do Batalhão distava do Mumbué. Chegou, arrumou de novo os livros no fundo da mala mas agora com cadeado, ligando o leitor de cassetes ouviu várias vezes "Trás Um Outro Amigo Também" do Zeca e "Pode alguém ser quem não é" do Sérgio. Depois cumpriu zelosamente as suas funções de oficial de dia, desde o arrear da bandeira nacional, à formatura do jantar e do recolher. Deitou-se na sua cama pensou em tudo o que o amigo Major lhe disse e dormiu. Faltava menos um dia para o fim daquela vida de preso em liberdade.

Se o pessoal da companhia já lhe chamavam de "chicalhão" pela disciplina que impunha, a partir desse dia passou a ser ainda mais rigoroso na disciplina militar e na defesa do seu grupo de combate.

O filho da puta do bufo médico um dia (domingo salvo erro) estava ausente do quartel de Comando sem autorização, um militar tem um acidente de carro vindo a falecer sem assistência. O sr. Major aproveitou e tratou logo de o mandar para o quinto dos infernos. Quando um dia estava na messe dos oficiais em Chitembo, o Major piscou-lhe o olho como que dizendo que daquele PIDE já nos livramos. Já os PIDES da Catota continuaram a segui-lo como o "alferes comunista" da 2ª Companhia, ficando-lhe com correspondência que o irmão e a namorada mais tarde mãe das suas filhas, lhe enviavam.

A UNITA na passagem de ano de 73 para 74, voltou a atacar diversos aquartelamentos. Voltaram os "senhores da guerra" a desenhar uma perseguição sem tréguas ao líder Savimbi, que vivia algures no mato dentro de Angola. Chamaram as tropas especiais, comandos, paraquedistas, fuzileiros e até os Katangas do Congo de Mobotu, incluindo também grupos de combate do Batalhão, três da 3ª Companhia, sendo um de GE's e outros 3 da 2ª Companhia, sendo também um de GE's. Grupos de combate reforçados para constituírem o número certo de equipas e soldados, 30 no total de cada grupo de combate. Saíram do Mumbué num domingo de Carnaval para em Silva Porto, embarcarem num comboio que os levou durante toda a noite para o Munhango, terra natal de Savimbi. Aí já os esperavam as viaturas dos Dragões de Cavalaria (tropa de cavalaria com cavalos puro sangue sul africano) que os levaram para o interior do que tinha sido a zona da UNITA onde, por motivos desconhecidos e secretos, a tropa portuguesa não operava até então. O capitão era da 3ª Companhia, um miliciano de cavalaria. Depois das duas primeiras saídas de três dias à volta da base tática, onde os da UNITA espreitavam os seus movimentos, seguiram-se operações de cinco dias. Nestas juntavam-se dois grupos com um de GE's. Como no grupo da 3ª companhia que saia com ele o Alferes estava de férias, era ele que comandava o total de 90 homens com os seus cinco furriéis, sendo 30 GE's que foram do Mumbué com eles. Depois da primeira operação de cinco dias soube que o capitão tinha mandado seguirem-no para se certificar que tinham atravessado o Rio Lungué-Bungo. Este rio é um afluente do Rio Zambeze sendo o rio que ao desaguar no Zambeze lhe dá caudal. Um rio de águas correntes e cristalinas, difícil de passar porque havia soldados que não sabiam nadar e não tinham pé, havendo que escolher um local pouco profundo mas mais perigoso por nele poder surgir uma emboscada dos homens da UNITA. Um rio sem jacarés pela corrente que apresentava. Nessa primeira operação em zona de contacto iminente, quando caminhavam a meio da tarde chegou-lhe a informação que no final da coluna havia quem não queria continuar a andar. Mandou parar a coluna e veio até junto dos soldados que não queriam continuar a andar por se sentirem cansados. O mais reivindicativo era o "Amendoim" que se tinha sentado e recusava-se a andar. Deu-lhe ordem para se levantar e quando o mesmo recusou, então ele meteu-lhe a bota no pescoço até a cara do soldado bater na terra. De imediato outros lhe apontaram a G3, solidários com o soldado "Amendoim". Olhou-os um a um, deu-lhes ordem para começarem a marcha, virou-se e foi para a frente da coluna em marcha. Tudo voltou ao normal da progressão atenta até encontrarem local com água para pernoitarem.

Antes de fazer a última operação de cinco dias, saiu o capitão com dois grupos comandados por alferes operações especiais, e grupo de GE's afeto à 3ª Companhia. Ao segundo dia de operação ouviram um tiro, o capitão torceu um pé e regressaram à base. Dias depois coube-lhe voltar com os seus 90 homens para mais cinco dias. Tinham-lhe destinado uma área na margem esquerda do Lungué-Bungo sendo que haveria na outra margem e em outra área a 42ª Companhia de Comandos.

Voltaram a atravessar o rio. Voltaram para a zona de contacto eminente onde era proibido fazer lume para aquecer as intragáveis rações de combate e onde até o fumar um cigarro estava condicionado. As culturas das lavras que as populações da UNITA tinham, estavam bem tratadas, aproveitando para comerem alguma mandioca ou outros legumes crus que iam encontrando. No segundo dia depois de terem palmilhado de novo alguns quilómetros começaram na busca de água porque a noite estava a chegar e os cantis estavam vazios. O guia estava um pouco desorientado com o encontrar um rio assinalado na carta topográfica. Era já noite quando encontramos local para reabastecer de água e acamparmos todos em linha e não em circulo como nos ensinavam, ficando pelo menos dois soldados de sentinela que se iam rendendo. Ainda a alvorada não tinha rompido quando os sentinelas os acordam em silêncio. Entre o chilrear da passarada ouviam perfeitamente ao longe o bater do pilão. Ordenou ao chefe dos GE´s que ficassem ali guardando os sacos mochilas dos soldados e partiram os dois grupos de combate apenas com as armas e munições. À medida que caminhavam o ouvir do bater do pilão era mais compassado mas mais perto. Na frente da coluna seguia o guia com a sua arma seguindo-se o soldado Teixeira, o Vila Real de alcunha e logo atrás ele como era sempre o seu hábito. Atrás de si todos em coluna com a distancia normal nestas situações. O pilão como que parou, mas o trilho com pegadas era recente. Quando já não se ouvia nem o pilão nem a passarada o guia parou e com a cabeça perguntou-lhe qual dos dois trilhos deveriam seguir, apontando-lhe ele com a cabeça para seguirem o da direita. Em boa hora o fez, mais à frente via-se à esquerda onde o outro trilho ia dar um aldeamento de cubatas e quando a coluna ficou mais junta começaram os disparos dos guerrilheiros da UNITA. Estavam debaixo de fogo na sua primeira experiência, todos deitados com o corpo colado ao chão, uns atrás das árvores com os furriéis a manda-los deitar e ficar quietos. Respondemos com alguns tiros de G3 enquanto o furriel que levava o morteiro 60 preparava o mesmo. Lançada a morteirada para o local de onde lhes parecia vir os tiros, lançou ele também o dilagrama que sempre levava na ponta da G3. Os guerrilheiros da UNITA ao sentirem o rebentamento do morteiro e da granada defensiva do dilagrama desataram a fugir como era o normal naquela guerra de guerrilha. Assim que os soldados se aperceberam que eles tinham fugido desataram a correr para dentro do aldeamento, arrombando portas e incendiando de imediato as cubatas. Se as cubatas estivessem armadilhadas quantos lá teriam ficado? Felizmente não estavam. A custo ele impôs de novo a ordem aos seus homens. Não foram atrás dos guerrilheiros, mas no estado de nervos em que se encontravam se os apanhassem não os iriam prender… para lhes perguntar se queriam receber um tiro na cabeça ali mesmo ou se queriam ser entregues e torturados pela PIDE? Na guerra faz-se o que não se imagina poder fazer antes de lá estar. Um pouco mais afastado estavam as casas dos guerrilheiros como era norma na disciplina da UNITA. Também essas foram incendiadas. No aldeamento da UNITA havia escola, igreja evangélica que também servia de tribunal entre eles. Ao ouvir as tristes notícias sobre a guerra da Ucrânia pensa que para aquela gente das notícias televisivas, ao incendiarem os aldeamentos da população da UNITA estariam também eles sujeitos a serem considerados criminosos de guerra. Ele que nunca foi criminoso. Regressados ao local onde os GE’s os aguardavam, mandou o soldado transmissões comunicar o sucedido ao comando na base tática. Da base recebeu ordens para avançar para novas coordenadas. Olhou com o guia o ponto das novas coordenadas. O guia franziu o sobrolho. Constava que semanas antes tropas especiais tinham sido rechaçadas pelos guerrilheiros da UNITA permitindo a fuga do líder, Savimbi. Deu ordem para poderem fazer lume e aquecer a ração de combate, porque referenciados já estavam. Puseram-se de novo em marcha a caminho das tais coordenadas. No final da manhã chegaram ao cimo de um morro de onde se avistava mata até perder de vista. Havia água perto e aí ficaram.

No regresso ao quarto dia, no quase final de tarde deparam-se com novo aldeamento mas este com população. Deu ordem para começaram a formar o cerco e ninguém atirava antes dele dar o tiro. Quando estavam a formar e sem se saber a razão um dos soldados GE’s deu um tiro. Tiro esse que permitiu à população pôr-se em fuga desordenada. No rescaldo apanharam uma velhota mais velha que o tempo com uma menina agarrada as suas pernas. Uma e outra apenas tinham uma pele de animal a tapar-lhes a parte genital. O guia falou com a velhota, lá se entendiam um pouco. A menina nem chorava tal era a cara de medo. Demos-lhes de comer das nossas rações. Não as algemamos, dormiram e vieram connosco para o acampamento, onde comeram da nossa comida até as viaturas do reabastecimento as levarem. Nunca quis saber o que lhes terá acontecido.

Já na primeira base tática que fez no Chinhomdze a dar apoio logístico à cavalaria dos Dragões de Silva Porto lhe entregaram um casal de guerrilheiros do MPLA que enquanto tiveram à sua guarda nunca os prendeu, comendo da mesma comida que eles. Depois ouviu uns zunzuns do que os pides da Catota lhes tinham feito aquando dos interrogatórios e apenas não se quer lembrar desses zunzuns.

Mesmo quando se vai para uma guerra sabendo que a mesma não é sua nem tem razão de existir, há regras que são como leis. A primeira, é que se tem de matar o outro, antes que o outro nos mate. A segunda, é que ao ouvir o segundo tiro nunca posso estar no mesmo sítio em que ouvi o primeiro. A terceira, e mais abrangente de todas, é que tenho que voltar vivo custe o que custar. Nesta terceira cabe tudo o que nunca se pensou ser capaz de fazer. Por isso não há guerras justas. Elas sempre acontecem por causas quantas vezes incompreensíveis e por culpas de dirigentes humanos ou muito pouco humanos. Em qualquer guerra quem mais sofre são os cidadãos inocentes e entre estes as crianças, os velhos e as mulheres. Não há volta a dar.

Esta guerra trouxe-lhe lembranças guardadas em gavetas que se abriram e que ele gostava que continuassem fechadas. Não são traumas de guerra que felizmente não tem, mas não é saudável recordar o tempo que lhe roubaram de vida e onde fez coisas que não pensava ser capaz de fazer.




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