quinta-feira, 21 de abril de 2022

22.04.09

09. 04. 22

Deitou-se cedo. Nem se lembra de como começou a dormir. Terá sido, tiro e queda. Ontem ao deitar fechou as portadas das janelas. A meteorologia anunciava chuva para a madrugada. Quando o corpo deu sinal, levantou-se. Tudo ainda era escuro. A Sacha dormindo na sua cama. Foi à casa de banho e ao voltar, olhou no escuro as horas no telemóvel. Eram 4H40. Deitou-se na esperança de dormir um pouco mais. Ao virar-se sobre o lado esquerdo lá estava na Avenida da Liberdade o sorriso dela, quando a ia esperar para de braço dado subirem a Calçada da Glória. Naquele tempo não se saudavam com beijo (que nunca trocaram). O sorriso dos olhos dela era a luz que os iluminava. Procurou afastar o seu sorriso em busca de mais umas horitas de sono. Não conseguiu. Automaticamente fez contas, já tinha dormido seis horas. Ia ser difícil voltar a adormecer. Virou-se para o lado direito e lá vinha ela da Rua das Pretas ao seu encontro na Avenida da Liberdade.

Depois, com a sua companhia ausente, acordado na madrugada deu voltas à vida, ao que foi e ao que é, sempre à volta do que poderiam ter sido. Ela não ia ser feliz. Naquele tempo em que a revolta contra a sociedade brotou qual lava dentro de si, não teve coragem de lhe falar, abandonando-a sem explicação. Passados mais de cinquenta anos o seu sorriso continua a acompanha-lo e ele continua a sua revolta, desenquadrado, tresmalhado do rebanho, num viver solitário contra o mundo, contra esta sociedade consumista que agora o brinda com um quase pensamento único, por causa da maldita guerra que se desenvolve lá na Ucrânia. Um mundo composto de multidões que se recusam a pensar nos porquês, que por comodismo aceitam como verdade-única o que as televisões lhes dizem e mostram, nas quais não se enquadra. Sabe que não tem o dom da verdade relativa, quanto mais o da verdade absoluta, mas enquanto puder recusa-se a deixar de pensar, a deixar de procurar entender o que não dizem ou o que escrevem nas entrelinhas das meias verdades que podem ser meias mentiras. É um ser inquieto, composto por uma montanha de dúvidas que à medida que o planeta roda vão crescendo dentro de si.

Ali está sozinho fisicamente. Na casa que seus pais construíram com muito sacrifício. Casa pequena, sem luxos nem materiais de primeira qualidade, que vai adaptando à medida das suas possibilidades, para que, não só ele mas eles, em especial, possam ver como a a casa deles está cuidada. Sim, acredita que o espírito não morre na hora do desapego em que a água seca no nosso corpo e a morte é oficialmente declarada. Não precisa, já não sente necessidade das religiões; todas elas não gostam de quem acredita que o espírito não morre, podendo vir a encarnar de novo. Até nisso navega contra a corrente da grande maioria, que religiosamente só pedem e põe nas mãos de Deus aquilo que aos humanos compete.

10.04.22

Cá estou de novo, escreve nos seus apontamentos. Mais ou menos à hora certa o seu corpo da sinal, num jogo entre si e o despertador do telemóvel, a ver quem é o primeiro a dar sinal.

Esta noite não fechou as portadas da janela do seu quarto. Gosta de acordar e sentir os raios diurnos a anunciarem-se. Porque gosta das madrugadas em vez das noitadas? Pensa para si em silêncio.

Ontem, sábado, passou o dia a arranjar um borrego que os senhores que utilizam os chões para as suas ovelhas e dois ou três cavalos, lhe ofereceram. Gente que lhe parece ser séria e a quem em tempo tinha dito se não lhe vendiam um borrego um pouco maior do que os que vendem nos supermercados. Afinal, trouxeram-lhe um bem grande que mais parecia já um carneiro. Passou o dia todo a arranjá-lo para o limpar das gorduras excessivas e do bedum (a pequena glândula que têm nas patas traseiras). As coisas que foi aprendendo quando os seus pais foram para lá viver após o seu pai se reformar da Guarda Fiscal. Até a sua mãe ter saúde, antes do AVC que a deixou incapacitada do lado direito, criavam coelhos, galinhas, patos, ovelhas e porco. Hoje, já não era capaz de matar um animal, mas nesses anos aprendou quase tudo, sendo que os borregos e o porco era ele que os desmanchava. As coisas que já fez, pensa para si na conversa que mantém com a ausência. Mas ao recordar escreve, toma nota, neste novo dia em que os ramos da velha oliveira lá fora não mexem. Pede desculpa. É a necessidade que todos os dias sente em falar, de lhe contar as suas tolices. Tolices de uma loucura que lentamente vai tomando conta de si silenciosamente. Ninguém sabe, ninguém nota, nem as análises e os exames clínicos denunciam. Só ele e a sua sombra, sabem, conhecem. Às vezes pensa, que tudo isto que vive é uma nova emboscada que a morte vem montando, ela que já por duas vezes se lhe anunciou. À terceira talvez seja de vez, quem saberá?

Sentado na cama olha o relógio. Já são sete horas. Hoje na tradição cristã ou do calendário litúrgico cristão apostólico romano é Domingo de Ramos. Que necessidade tem para se levantar tão cedo? Hábitos que criou. É assim todos os dias, seja domingo, feriado ou dia de semana. A Sacha à entrada do quarto olha-o como que dizendo-lhe que está na hora de irem esticar as pernas. Assim começa todos os dias em que se recuso a viver como se o dia fosse o seu último dia de vida, em oposição, vive cada dia como se fosse o primeiro dia do resto da sua vida.

Depois da volta matinal que os dois fizeram, escreveu e publicou na sua página da rede social que frequenta:

«O dia chegou e com ele ainda predominava o nevoeiro, que não sendo cerrado era intenso. Andando com a minha amiga pelas quelhas habituais não vislumbrei entre oliveiras e azinheiras a chegada do louco El-rei D. Sebastião. Já antes de sair ao olhar as páginas dos jornais, não tinha lido nem visto notícias da tão desejada Paz. Só a guerra, a sua difusão numa interpretação de pensamento único, futebol ou artistas da bola e mais alguma violência urbana e doméstica.

Um dia, domingo de ramos segundo o calendário litúrgico dos cristãos, onde o nevoeiro se nos apresentou com o seu "Bom dia, Bom domingo" »


Está quase no quintal a acabar de almoçar e na sua loucura silenciosa a falar com quem está ausente. É assim, mas não se pode queixar. Quem semeia ventos colhe tempestades ou cá se fazem cá se pagam ou ainda como disse num dia um político manhoso, "é a vida".

No telheiro que transformou em marquise, almoça vendo a estrada nacional mas o que maior prazer lhe dá é observar a passarada nas suas danças nas suas falas. Andam dois machos pintassilgo no quintal em busca de material para o ninho. A sua memória voa mais rápida que a velocidade da luz, até Ferrel no seus oito ou nove anos, quando aprendeu a armar aos pássaros. Não se lembro onde e como comprou as ratoeiras. Lembra-se de às escondidas da mãe, ele e o irmão, apanharem as galinhas para lhes roubar penas do rabo e com elas enganar os pássaros na ânsia de fazerem o ninho para de novo procriarem. O primeiro desgraçado que apanhou na ratoeira, aquando das férias da Páscoa, foi um pintassilgo, uma das aves mais bonitas quer na cor da sua plumagem, quer no chilrear, que é de todos os cantos o que mais gosta de ouvir. Teve um durante anos, que o acompanhava com o seu chilrear nas madrugadas em que se levantava para estudar. Nesse tempo conheceu-a e logo começou a gostar dela. Lembra-se como a chamavam no primeiro ano do ICL. Conhece o canto do pintassilgo à distância, ficando imobilizado ao ouvi-los nas suas sinfonias celestiais em liberdade. Hoje era incapaz de os prender numa gaiola.

Bebeu mais um copo do seu licor de poejo. Gosta de aromas fortes, onde o poejo selvagem tem lugar de preferência. Nestas terras do interior raiano de Idanha-a-Nova tudo, mas tudo, tem um outro sabor, um outro cheiro, um outro paladar.

Almoçou uma fritada de carne com uma salada de alface, tomate, cebola nova e coentros, acompanhado com um "Post Scriptum" do Douro 2014, terminando com um café e vários copinhos de licor de poejo fresquinho que fez no verão passado.

Ninguém no mundo dos vivos, a não ser ele próprio, sabe a felicidade que sente ao almoçar ali no seu quintal, frente à estrada nacional onde passam carros e camiões para e de Espanha. É um sentimento de Liberdade único, uma Paz, que até pode ser considerada egoísta face ao que acontece em especial ao povo desgraçado lá pela Ucrânia.

11.04.22

Bom dia, diz saudando todos os seus ausentes. Abriu a portada da janela para ver o clarear do dia que segundo os especialistas nas questões do tempo será de chuva. A Sacha já está aos pés da cama, fazendo a sua manicura às patas. Já olhou e inspecionou as mesmas, mas não viu nada de errado. A Sacha, pastora alemã com quatro anos, é um animal de muita força, impulsivo e de caráter dominante. Tem dias em que se cansa e quase se arrepende de a ter ido buscar à senhora que estava a doar os cachorros de uma ninhada. A senhora é advogada em Lisboa. não tendo vida para cuidar da ninhada que nasceu por descuido ou não, pouco importa, decidiu doar as crias. Passou a viver consigo desde as quase oito semanas de vida. Com o seu caráter dominante, às vezes deve pensar que é ele que vive com ela e não o contrário. Livremente condiciona a sua vida, para onde vai leva-a. Se não a pode levar, não vai simplesmente.

Continua, sem perceber o mundo que o rodeia. A guerra na Ucrânia veio agravar a sua relação com a maioria. Recusa-se a ser juiz, a decidir que, de um lado estão os maus e do outro estão os bons. Certo, que invadir um país vizinho é um presumível crime difícil de imaginar antes da invasão se dar. Todavia, todas as guerras têm os seus porquês, as suas causas, umas mais próximas que outras. Não vê que nenhum dos líderes em litígio direto e indireto, seja o tal lado bom apregoado em uníssono pela comunicação social ocidental. Numa guerra, qualquer que ela seja, nunca os inimigos dizem e emitem notícias verdadeiras. Hoje mais do que nunca, jogam com a comunicação, com as emoções das fotos, dos vídeos, das ditas reportagens em direto. Tudo para iludirem os espetadores na escolha do bom contra o mau. Não joga nesse jogo.

Vê com tristeza a promoção que se faz a um líder político que pouco ou nada tem de bom. Um sujeito comediante que chegou a líder mantendo e apoiando milícias privadas defensoras da raça pura ariana ucraniana, que ao longo dos últimos anos massacraram, violaram, mataram, quem eles acham que são impuros, animais inferiores na sua versão ariana, e, não foram só russos também judeus, roma e gays. Não pode concordar que esse sujeito seja considerado o bom, o novo herói do chamado mundo ocidental, porque do outro lado está o mau, o czar ditatorial russo que todos conhecemos há anos. Para ele, ambos são maus exemplares da raça humana. Ambos não gostam da Democracia criada com o 25 de Abril português. Ambos os líderes não prestam.

15.04.22

Voltou para os arrabaldes da cidade grande na terça. Segunda e terça foi chovendo por lá. Fez parte da viagem debaixo de chuva. A ausência seguia no banco ao seu lado. É a sua loucura, o seu segredo, o saber viver que foi aprendendo com os erros que cometeu ao longo da sua caminhada. Pensa que não foram muitos, mas de todos os erros só um lhe pesa na sua consciência de um modo diferente, num sentir que com o tempo vem ficando mais pesado mais dorido sem sarar.

Hoje, quinze de Abril é um dia em que os seus olhos deveriam transmitir alegria, felicidade e não a tristeza vazia que sente no peito. De manhã fez e ajudou na cozinha. Gosta de comer, de fazer coisas diferentes do usual de todos os dias de todas as semanas. Gosta de ervas vegetais. Trouxe do seu quintal algumas favas e algumas ervilhas que plantou. Com elas preparou um prato de vários vegetais aos quais juntou um pouco se soja granulada. Já tem jantar para vários dias. Para o almoço apetecia-lhe um arroz de grelos (que trouxe de lá) para acompanhar uma ou duas postas de pescada do Cabo, frita. E, assim fez. Coisas simples. Dizem que o peixe frito faz mal à saúde, assim como nos dizem tantas outras coisas que se dermos ouvidos não saberemos o que comer, o que fazer. Já não terá muitos anos pela frente, pelo que irá procurar comer o que gosta e lhe dá prazer, com moderação, porque quer abater alguns quilos ao seu peso. Outro dia, pesou-se e assustou-se com os noventa e cinco quilos dados pela balança. A vida sedentária que leva nos arrabaldes da cidade grande é terrível. Depois, sempre foi e continua sendo um indisciplinado em ganhar rotinas que lhe façam bem. Inscreveu-se na natação. Veio o vírus e não mais lá voltou. Comprou uma bicicleta, mas com a cadela deixou de andar de bicicleta logo pela manhã, depois com o transito de hoje sente receio em andar na estrada.

Bem, mas hoje é o dia de aniversário da sua neta mais nova, a Luísa. Faz sete anos. Teve a sua festa com os seus amigos lá de Torres Vedras. Tem uma outra neta com treze anos. Maria, irmã mais velha da Luísa, que foi disputar no norte do país um torneio de vólei para o qual a sua equipa foi convidada.

Da filha mais velha, tem um neto que é o mais novo dos três. Fará os seus sete anos no mês de Julho. Nasceu no Rio de Janeiro. Os pais estavam lá a trabalhar com emigrantes.

17.04.22

Já leva uma hora acordado. O relógio da entrada deu as 6H30. Andou vendo as capas dos jornais, olhou depois as ditas redes sociais. Nada de novo lhe disseram.

Hoje é Domingo de Páscoa. A cada ano a margem por onde caminha e navega se encontra mais afastada destas celebrações. Este ano teve momentos em que olhar vídeos sobre as tradições litúrgicas cristãs, chegou a sentir uma ponta de medo. A religiosidade é trampolim para fanatismos e vaidades. Sempre assim foi, mas com a guerra o pensamento único que domina a sociedade refletiu-se também nas celebrações cristãs católicas.

Medo que gerou em si a dúvida ou foi esta que gerou o medo, não sabe. Sabe que chegou a ter medo. Caminha-se correndo num retrocesso civilizacional, quando a maioria se deixa levar por mentes bem falantes mas perigosas nos seus desígnios, na escolha de quem são os bons e quem são os maus, não se anunciam tempos de aceitação e de concórdia. Foge desta forma de ver a vida, onde a pensamento único dominante sobre a guerra, se junta à presumível história cristã sobre a morte de Jesus. Historia criada a mando, para a construção e consolidação da religião, que da morte de Jesus criou a imagem de um Cristo morto e crucificado pelos maus (os judeus), ponto final.

Já há dois anos, neste dia de Páscoa lhe escreveu e guardou.

Esta sua loucura tem raízes de há longo tempo. Loucura silenciosa que não deixa de crescer lenta e silenciosamente. Não sabe se terá forças para bater à porta, tocar a campainha, para cara a cara lhe pedir desculpa do que lhe fez há mais de cinquenta anos. Tem medo de lhe causar problemas agora, quando no outro tempo de então não pensou ou se recusou a pensar sem se importar com a dor o sofrimento com os problemas que lhe causou ou agudizou. Sofrimento, remorso que neste tempo de agora vai alimentando a sua silenciosa loucura que ninguém vê, ninguém sabe, que nem os exames e análises clínicas denunciam, só ele e a sua sombra sabem do seu progresso silencioso.

Não quer terminar a sua viagem terrena sem lhe pedir desculpa, perdão pelo que um dia lhe fez, ao deixa-la sem uma palavra, sem uma explicação do porquê, se era dela que ele gostava era ela que ele amava, levando consigo a luz do seu sorriso, que ainda nesta Páscoa de 2022 perdura.

Há vidas que são histórias que nem parecem ser verdadeiras.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.