sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

47 anos se passaram



Naquele tempo já o Senhor não falava com os seus Apóstolos. Eram um tempo sem tempo tantas as incertezas e as dúvidas que o tempo naquele tempo carregava aos ombros.
A manhã na cidade banhada pelas águas do Lima via partir mais um companhia de militares para um destino conhecido mas incerto. Os valentes soldados aprumados nas suas fardas verdes de cerimónia, engomadas a preceito, último modelo das passerelles do regime, botas à prova de chu-lé trabalhadas pelos melhores artesãos do reino a brilharem de tanto lustro lhes ser dado, olhar perdido no destino que mais do que nunca era incerto foram desde o Forte de Santiago da Barra até à estação dos Caminhos de Ferro ao cimo da bonita Avenida dos Combatentes da Grande Guerra com tempo para poderem olhar o rio que ao fundo da mesma calmamente entrega as suas águas ao mar, sentindo eles que ao entrarem naquele comboio estavam a entregar a sorte do seu destino aos senhores da guerra que em palácios bem acomodados os mandavam para a guerra indiferentes ao sofrimento de suas famílias.
A viagem inicial de outras viagens fez-se sem paragens até Santa Apolónia em Lisboa. Uma viagem sem sol que o dia amanheceu cinzento e triste como que pressentindo a sorte daqueles mancebos. Alguns deles nem a barba precisavam de fazer ainda de tão novinhos e tenrinhos. No final da linha o maquinista accionou os freios do comboio já a tarde do dia
15 estava quase no seu ocaso. As viaturas militares esperavam-os e depressa entraram nelas de modo a evitar que alguns cidadãos que na altura regressavam a casa depois de um dia de trabalho pudessem manifestar algumas frases incomodas ao sistema. Dali seguiram para o então Regimento de Engenharia 1 no Campo Grande onde lhes estava reservada a última refeição do dia em solo pátrio.
Ele oficial de dia à Companhia depois de zelar pelo jantar ordenado do pessoal foi com seu irmão e os seus furriéis jantar à Churrasqueira do Campo Grande ali ao lado.
À hora marcada voltaram todos a subirem para as viaturas militares com destino ao aeroporto militar no Figo Maduro. Por duas vezes tinha olhado a casa onde viviam nos Olivais Sul, por duas vezes os seus olhos se encheram de lágrimas e uma dor no peito sangrando que só quem vai para uma guerra que não lhe pertence de todo, sabe como é. Sua mãe quando o irmão voltou para casa acompanhado dos primos de Azambuja aquela hora da noite, viu nesse instante que o seu filho, o seu menino querido já tinha partido sem um beijo, sem um abraço, sem um adeus daquela que um dia o gerou no ventre, o pariu e o criou com tanto amor e carinho. Mas mãe que é mãe tudo perdoa a seu filho.
Viagem de noite sobre o mar chegando ao romper do dia às terras avermelhadas e verdes de Luanda.
Angola, terra grande e rica. Grande de tantos contrastes, de tantos odores, de tanta beleza, talvez por isso tão cobiçada. Mas, que fazia ele ali naquele campo atulhado de militares, muitos como eles chegando andando meios perdidos, enquanto outros festejando o regresso olhavam com ar de gozo para eles jovens maçaricos meio amedrontados meio atarantados naquela confusão, que nem as noites corridas pelos muitos bares e cabarés nocturnos de mulheres fáceis, fumo e álcool em Luanda os acalmava. Tudo era estranho, os cheiros, o calor húmido que não os deixava secar depois dos banhos ao longo do dia, a comida na Pensão Setubalense onde ele recusou papaia a pensar que lhe estavam a servir abóbora, santa ignorância a sua; as pessoas brancas e negras que passavam por eles olhavam-os de lado, «mais uns que vêm fazer a guerra no mato» desprezo era o sentimento que lhes transmitiam, como se fossem eles, pobres militares, os culpados por aquela situação anacrónica de uma guerra sem sentido nem futuro.
A partida para destino desconhecido chegou. Foram transportados em camiões civis, tipo transporte de gado. Dois dias demorou a viagem por estradas asfaltadas. Chegaram ao Mumbué no quase final de tarde do dia 22 de Dezembro, sendo recebidos em delírio pelos camaradas da Companhia que foram render. Eles dançavam, eles cantavam, eles batiam com os pratos, uma loucura em festa para a qual olhavam perdidos sem saberem que dizer, maçaricos que eram. Arrumado o pelotão na caserna que foi destinada ao seu grupo, sentou-se na sua mala junto à messe de oficiais, olhando atónito para a festa que soldados, furriéis,e oficiais faziam pela chegada deles. A alegria louca de uns era a interrogação e o medo dos “maçaricos” acabados de chegar para os renderem. Ali, sentado no meio do nada, numa terra que não era sua nem nunca foi talvez nossa, rodeado pela loucura em festa, pensava no seu pai, na sua mãe de quem não me despedira, ali estava sentado os olhos embaciados pelas lágrimas que não caiam, a sua fiel companheira G3 entre as mãos, com o pensamento muito longe, sem compreender o que fazia ele ali, onde estava a época natalícia da sua cidade de ruas iluminadas com o cheiro das castanhas assadas?. Alguém o procurou, não se lembra quem foi, e o ajudou a levar as coisas para o quarto que os quatro alferes dividiam. Ninguém ali a não ser ele próprio e a sua sombra sabia, soube que naquele dia 22 de Dezembro de 1972, o dia da chegada ao Mumbué fazia ele os seus 22 anos. Uma idade bonita para festejar com seus pais e irmão, já que a única namorada que tinha tido a abandonou anos antes sem lhe dar qualquer justificação. Ali estava ele só no meio daquela festa que não era sua, embora fosse uma festa justa para todos aqueles, também jovens militares à força, que eles tinham ido render.
Nos dias que se seguiram ao tomar consciência com a realidade absorvendo os odores daquela terra, a ideia que nele fermentava desde Chaves transformou-se no seu objectivo de vida enquanto militar: – a defesa das vidas humanas que o regime tinha colocado sob as suas ordens custasse o que custasse.
Hoje, olha e lembra tudo o que a memória guardou, o bem que fez, mas também o mal e a dor que causou aos outros. Do bem que fez e terá feito não se arrepende, fez o que tinha a fazer. Já do mal e da dor que causou não se livra, a culpa é como o medo, viajam sempre connosco gostemos ou não, não há como fugir acompanham-nos em versão siamês.

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