Naquele
tempo já o Senhor não falava com os seus Apóstolos. Eram um
tempo sem tempo tantas as incertezas e as dúvidas que o tempo
naquele tempo carregava aos ombros.
A
manhã na cidade banhada pelas águas do Lima via partir mais um
companhia de militares para um destino
conhecido mas incerto. Os valentes soldados aprumados nas suas fardas
verdes de cerimónia, engomadas a preceito, último modelo das
passerelles
do regime, botas à prova de chu-lé
trabalhadas pelos melhores artesãos do reino a brilharem de tanto
lustro lhes ser dado, olhar perdido no destino que mais do que nunca
era incerto foram desde o Forte de Santiago
da Barra até à estação
dos Caminhos de Ferro
ao cimo da bonita Avenida
dos Combatentes da Grande
Guerra com tempo para poderem
olhar o rio que ao fundo da mesma calmamente entrega as suas águas
ao mar, sentindo eles que ao entrarem naquele comboio estavam a
entregar a sorte do seu destino aos senhores da guerra que em
palácios bem acomodados os mandavam para a guerra indiferentes ao
sofrimento de suas famílias.
A
viagem inicial de outras
viagens fez-se sem paragens
até Santa Apolónia em
Lisboa. Uma viagem sem sol
que o dia amanheceu cinzento e triste como que pressentindo a sorte
daqueles mancebos. Alguns deles
nem a barba precisavam de
fazer ainda de tão novinhos
e tenrinhos. No
final da
linha o maquinista accionou os
freios do comboio já
a tarde do dia
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estava quase no seu ocaso.
As viaturas militares esperavam-os e depressa entraram nelas de modo
a evitar que alguns cidadãos que na altura regressavam a casa depois
de um dia de trabalho pudessem
manifestar algumas frases incomodas
ao sistema. Dali seguiram para o então Regimento de Engenharia 1
no Campo Grande onde lhes
estava reservada a última refeição do dia em solo pátrio.
Ele
oficial de dia à Companhia depois de zelar pelo jantar ordenado do
pessoal foi com seu irmão e os seus furriéis jantar à
Churrasqueira do Campo Grande ali ao lado.
À
hora marcada voltaram
todos a subirem
para as viaturas militares com destino ao aeroporto militar no Figo
Maduro. Por duas vezes tinha olhado
a
casa onde viviam
nos Olivais Sul,
por duas vezes os seus
olhos
se encheram de lágrimas e uma dor no peito sangrando
que
só quem vai para uma guerra que não lhe pertence
de todo,
sabe como é. Sua
mãe quando o irmão voltou para casa acompanhado dos primos de
Azambuja aquela hora da noite, viu nesse instante que o seu filho, o
seu menino
querido
já tinha partido sem um beijo, sem um abraço, sem
um adeus
daquela que um dia o gerou
no ventre, o pariu
e o criou com tanto amor e carinho. Mas mãe que é mãe tudo perdoa
a seu filho.
Viagem
de noite sobre o mar chegando ao romper do dia às terras
avermelhadas e verdes de
Luanda.
Angola,
terra grande
e rica.
Grande
de tantos contrastes, de tantos odores, de tanta beleza, talvez
por isso tão cobiçada. Mas, que fazia ele
ali naquele campo atulhado de militares, muitos como eles
chegando andando
meios perdidos, enquanto
outros
festejando o regresso olhavam
com ar de gozo para eles
jovens maçaricos meio amedrontados meio atarantados
naquela confusão, que nem as
noites
corridas
pelos muitos bares e
cabarés
nocturnos de mulheres fáceis,
fumo
e álcool
em Luanda os
acalmava.
Tudo era estranho, os cheiros, o calor húmido que não os deixava
secar depois dos banhos ao longo do dia, a comida na Pensão
Setubalense onde ele
recusou
papaia
a pensar que lhe
estavam a servir abóbora, santa ignorância a
sua;
as pessoas brancas
e negras que
passavam por eles
olhavam-os
de lado, «mais
uns que vêm fazer a guerra no mato»
desprezo
era o sentimento que lhes
transmitiam, como se fossem eles,
pobres militares,
os culpados por aquela situação anacrónica de uma guerra sem
sentido nem futuro.
A
partida para destino desconhecido chegou. Foram
transportados em camiões civis, tipo transporte de gado. Dois dias
demorou a viagem por estradas asfaltadas. Chegaram
ao Mumbué no quase final de tarde do dia 22 de Dezembro, sendo
recebidos em delírio pelos camaradas da Companhia que foram
render. Eles dançavam, eles
cantavam,
eles
batiam
com os pratos, uma loucura em
festa para
a qual olhavam
perdidos
sem
saberem que dizer,
maçaricos que eram.
Arrumado o pelotão na caserna que foi destinada ao seu
grupo,
sentou-se
na sua
mala junto à messe de oficiais, olhando atónito para a festa que
soldados, furriéis,e oficiais faziam pela chegada deles.
A alegria louca de uns era a interrogação e o medo dos “maçaricos”
acabados de chegar para os renderem.
Ali, sentado no meio do nada, numa
terra que não era sua
nem nunca foi talvez
nossa,
rodeado pela loucura em festa, pensava no
seu
pai,
na
sua
mãe
de quem não
me
despedira,
ali
estava
sentado os
olhos
embaciados
pelas lágrimas que não caiam,
a
sua
fiel
companheira
G3 entre as mãos, com o pensamento muito longe, sem compreender o
que fazia ele
ali, onde
estava a época natalícia da
sua
cidade
de
ruas iluminadas com
o cheiro das castanhas assadas?.
Alguém o
procurou, não se
lembra
quem foi, e o
ajudou
a levar as coisas para o quarto que os quatro alferes dividiam.
Ninguém ali a não ser ele
próprio e
a sua
sombra sabia,
soube
que naquele dia 22 de
Dezembro de
1972,
o
dia da chegada ao
Mumbué fazia
ele
os seus
22 anos. Uma idade bonita para festejar com seus
pais e irmão, já que a
única
namorada que
tinha
tido
a abandonou
anos antes sem lhe dar qualquer justificação. Ali
estava
ele
só
no meio daquela festa que não era sua,
embora fosse uma festa justa para todos aqueles, também jovens
militares
à força,
que eles
tinham
ido
render.
Nos
dias que se seguiram ao tomar consciência com a realidade absorvendo
os odores daquela terra, a ideia que nele fermentava desde Chaves
transformou-se no seu objectivo de
vida enquanto
militar:
– a defesa das vidas humanas que o regime tinha colocado sob as
suas ordens custasse o que custasse.
Hoje,
olha
e lembra
tudo o que a memória guardou, o bem que fez,
mas também o mal e a dor que causou
aos
outros. Do bem que fez
e terá feito não se arrepende,
fez
o que tinha a fazer. Já do mal e da dor que causou
não se
livra,
a culpa é
como o medo, viajam
sempre connosco gostemos ou não, não há como fugir acompanham-nos
em
versão siamês.
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