quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Poemas de Natal



Por esta altura do ano, volto a tirar-te do teu lugar na estante para partilhar contigo aquilo que ao longo dos anos me tens dado.
Hoje talvez pelo frio me convidar leio-te devagar sem qualquer tipo de pressa, vejo que ainda manténs parte do talão de controle que naquele tempos se usava «LIVRELCO Cooperativa Livreira de Universitários», na página em frente vejo escrito pela minha mão de então o meu nome e a data em que te adquiri «24-12-71». Comprei-te para me oferecer como prenda de Natal desse ano de setenta e um ou como prenda dos meus vinte e um anos feitos dias antes, talvez fosse os dois em um.
Por razões que neste tempo de agora desconheço, suponho que deves ter passado despercebido aos censores do lápis azul ou então foste posto à venda sem eles darem conta. Vejamos, as fotos são do Eduardo Gageiro, o prefácio de Felicidade Alves, impresso nas Oficinas Gráficas do Notícias da Amadora, com citações de Dom Hélder Camara, Karl Marx, José da Silva e outros, os poetas são vários cada um com a sua mensagem a condizer com a fotografia.
Nesse ano em que te adquiri já sabia que o meu destino seria a guerra, onde e quando é que ainda não sabia nem tão pouco imaginava onde estaria no Natal seguinte, já que com a especialidade de atirador de infantaria não tinha outro horizonte que não fosse o ir ou o desertar. As cartas estiveram em cima da mesa. Contudo aderi ao pensamento que naquele tempo defendia que deveríamos ir à guerra. Tu me acompanhaste naquele tempo em que o meu tempo de vida me foi roubado. Viajaste no fundo da minha mala juntamente com outros livros proibidos ou amaldiçoados pelos censores do regime, até te colocar naquelas tábuas que me serviam de cabeceira para nos dias em que não andava no mato atrás dos outros que queriam aquela terra como sua, me fazeres companhia quando colocava o corpo sobre a cama e lendo-te viajava no tempo para um outro tempo que eles me roubaram.
Diz, Felicidade Alves (que já não era padre) no prefácio deste pequeno livro:
«Não nasceu ele, Jesus, nas mansões abastadas de Jerusalém, de Jericó ou dos arrabaldes elegantes da capital. Nem sequer nasceu na humilde casinha ou barraca na terra onde residiam seus pais. Eram emigrantes. As vicissitudes da política imperial forçaram aquele casal a deslocar-se. E foi como que num bidonville que os braços de Maria acolheram o menino e o envolveram em paninhos, colocando-o sobre as palhas da mangedoira dum curral de gado, ali em Belém de Judá. É que não havia lugar para eles nos albergues ou motéis da vila.
A contrastar com tão insignificante fenómeno, indiferenciado ou até menos dramático, do que o de milhares de outros nascimentos de então e de agora e de sempre, a consciência cristã viu ali um mistério latente: o estilo inconfundível e programático do Deus-connosco. Os pastores das redondezas são alertados; os sábios que investigam os sinais do cosmo pressentem que o universo está a sofrer um singular estremeção. Acorrem uns e outros, oferecendo cada qual o seu género de presentes. E atribui-se à intervenção de misteriosos seres cantares de júbilo, em que se definia o manifesto da mensagem nova, resumida nesta legenda:
Glória a Deus em sua transcendência
E Paz na terra aos homens, pois Deus a todos quer bem.
Aqui se revela a Esperança e a Aurora dum Mundo Novo. Os primeiros cristãos acreditavam que tudo iria ser transformado. A Paz e a Justiça, a Liberdade e o Amor, a Fraternidade e a Igualdade, a Partilha e a Comunhão – numa palavra, o estilo de Jesus, arauto da maneira divinamente revolucionária de conceber a Realeza de Deus, à margem dos cultos sacrais, faria novas todas as coisas!
Assim disse a fé dos cristãos das origens. Passam séculos. Os actuais discípulos de Jesus, corporativamente observados, já não são uma comunidade de irmãos que semeia a Esperança e constrói um mundo-outro: são uma poderosa organização religiosa, tecnicamente bem apetrechada com os mais eficazes meios de dominação, que o Poder, o Ter, o Saber lhe conferem. São uma alavanca do mundo, tal como Jesus o veio contestar.»
E, mais coisas diz Felicidade Alves no prefácio deste pequeno livro de “Poemas de Natal”.
Leio e releio os diversos poemas que ele contém. Entre as dúvidas de qual poema escolher se o Natal de Álvaro Feijó ou de António Gedeão ou de Jorge de Sena ou de Manuel Sérgio ou de Miguel Torga e outros acabei no poema de Sophia de Melo Breyner Andresen,
A ESTRELA
Eu caminhei na noite
E entre o silêncio e o frio
Só uma estrela secreta me guiava.

Grandes perigos na noite me apareceram:
Da minha estrela julguei que eu a julgara
Verdadeira sendo ela só reflexo
Duma cidade a néon enfeitada.

A minha solidão me pareceu coroa.
Sinal de perfeição em minha fronte.
Mas vi quando no vento me humilhava
Que a coroa que eu levava era dum ferro
Tão pesado, que toda me dobrava.

Do frio das montanhas eu pensei:
«Minha pureza me cerca e me rodeia».
Porém meu pensamento apodreceu
E a pureza das coisas cintilava
E eu vi que a limpidez não era eu.

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito
Em monstruosa voz se transformaram:
Pedi às pedras do monte que falassem
mas elas como pedras se calaram
Sòzinha me vi, delirante e perdida
E uma estrela serena me espantava.

E eu caminhei na noite; Minha sombra
De gestos desmedidos me cercava
Silêncio e medo
Nos confins dos desertos caminhavam:
Então vi chegar ao meu encontro
aqueles que uma estrela iluminava
E assim me disseram: «Vem connosco
Se também vens seguindo aquela estrela»
Então soube que a estrela me seguia.

Era real e não imaginada.
Grandes e humanas miragens nos mostraram
Em direcções distantes nos chamaram
E a sombra dos três homens sobre a terra
Ao lado dos meus passos caminhava.
E eu espantada vi que aquela estrela
Para a cidade dos homens nos guiava.
E a estrela do céu parou em cima
duma rua sem cor e sem beleza
Onde a luz tinha o tom que a cinza
Longe do verde-azul da Natureza.

Ali não vi as coisas que eu amava
Nem o brilho do sol nem o da água.
Ao lado do hospital e da prisão
Entre o agiota e o templo profanado
Onde a rua é mais negra e mais sem luz
E onde tudo parece abandonado
Um lugar pela estrela foi marcado.

Nesse lugar pensei: Quanto deserto
Atravessei para encontrar aquilo
Que morava entre os homens tão perto.

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