sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Dois livros


Dois livros neste tempo de verão que me transportaram para muitos anos atrás, quando ainda quase menino me levaram para bem longe, sabendo eu ao que ia e qual a finalidade daquela viagem tão longa, primeiro até às terras desconhecidas do chamado «fim do mundo» na zona militar leste de Angola, acabando depois já homenzinho nas terras de barro vermelho da fronteira norte com o Zaire de Mobotu.
Chegámos ao Mumbué no dia em que fazia os meus vinte e dois anos, era quase altura de se festejar no mundo católico o Natal, porque há outros natais, não existindo contudo Natal na guerra; dia que nunca esquecerei, que esta guardado nesta memória de um homem grisalho que teima em recordar as andanças da vida. Vinte e dois anos de menino e moço, longe do colo de minha mãe, de meu pai e do abraço de meu irmão, longe dos amigos, este alferes miliciano de uma companhia de caçadores (tropa macaca), tinha a responsabilidade de manter viva a vida de pelo menos trinta outros tantos jovens minhotos, transmontanos e angolanos do seu grupo de combate, custasse o que custasse, por opção não tinha desertado, logo contra ou contornando sempre que possível as regras ordenadas pelos superiores hierárquicos, o mais importante era podermos crescer e regressar todos juntos ao ponto de partida, os de Angola a Luanda e os do “Puto” ao colo das nossas mães, mulheres, namoradas, madrinhas, à terra que nos vi nascer e um dia partir de avião para outras terras de outros gentios. Objectivo conseguido, mas quando regressámos a guerra veio connosco e connosco vai vivendo como se fosse a irmã siamesa que um dia adotamos sem dar por isso. Numa guerra não há soldados vencedores, todos perdem.
Com o vinte e cinco de Abril, as operações de patrulhar o mato continuaram, mas tudo mudou mesmo no mato e num dia escolheram nomearam-me, para com uma equipa composta de vários soldados acompanhar as tropas da Unita que em acordos superiores realizados com os senhores da guerra, se apresentou no Mumbué para fazerem a sua acção psicológica nos diversos quimbos da nossa zona de acção militar. Se antes para um almoço um jantar especial se tinha que ir a um quimbo, apanhar um porquinho ou um cabrito à força do poder das armas, passei ao acompanhar os soldados da Unita a ser prendado com vários cabritos, tantos que já andava farto de comer ensopado ou cabrito assado no forno, e quando as altas patentes dos poderes militares nos ordenaram a mudança para o norte, lá deixei ficar no Mumbué quase vinte cabeças.
No norte, nos destacamentos de fronteira, as noites passadas a conversar com o capelão militar, o seu nome não era Juvêncio como o do livro A Rebelião, mas porque ainda hoje é pároco amigo, o seu nome e as nossas conversas ficaram guardadas nas noites de Malele. Mas quem não tinha duvidas naqueles tempos naquelas terras, onde a tal mão de Deus parece nunca ter por lá andado. Duvidas que ele terá contornado resolvido e eu adensado.
Dois livros, duas formas de escrever, mas ambos na minha ideia muito bons. Se o Nó Cego é o melhor livro sobre a guerra colonial para todos aqueles que a fizeram em operações no mato onde o sofrimento, a crueldade e a miopia das altas patentes do reino estão retratadas a preceito de forma realista, A Rebelião é um outro caminho que começa passa pela guerra não acabando nela, daqueles jovens que um dia foram sonhando com um mundo onde a justiça, o bem e o amor fossem as forças e a razão do viver; do desencanto com os sofrimentos da guerra, viram no vinte e cinco de Abril a chama que lhes reacendeu todas as utopias para hoje grisalhos e mais velhos viverem quase todos na borda do sistema, sentindo-se um estorvo para os actuais governantes, como se fossem eles próprios os culpados de um dia terem participado numa guerra que nunca foi deles; mas, como existe sempre um candeia acesa mesmo na noite mais escura, a utopia em muitos desses antigos combatentes é a flor utópica que não morre, a flor que lhes fornece o pólen com que fecundam os seus sonhos para um Mundo Melhor, mais Fraterno onde a Igualdade não seja só uma palavra mas também um conceito, uma Sociedade Decente e Digna sem “sobejos” nem rejeitados, onde os direitos, deveres e as obrigações não conheçam classes sociais nem estatutos profissionais, se apliquem a todos por igual e não este faz de conta que vivemos nos dias de hoje. Um mundo onde o Amor seja como um dia uma criança na escola primária terá escrito «Amor é não haver polícias» e outra terá escrito «Amor é um pássaro verde num campo azul no alto da madrugada» (Vitor Barroca Moreira, aos nove anos, e Maria Rosa Colaço colheu e plantou, junto com outras obras de precisão de crianças no livrinho A Criança e a Vida nos anos 60 do século passado )


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