terça-feira, 1 de maio de 2012



Não estava habituado mas as contingências da vida atiraram-no para aquela situação, acordar todos os dias sem ter a obrigação de se levantar… não estava reformado, ainda faltam muitos anos para se reformar, mas estava classificado com um chip de “velho para trabalhar”, não pertencia a numero clausus mas também não sabia ao que pertencia, tinha bilhete de identidade e numero de contribuinte, tinha obrigações mas os direitos estavam esquecidos não estavam gravados no chip, ninguém o queria para trabalhar e o organismo que lhe daria o direito a uma pensão de reforma não o considerava nas suas listagens, era ainda muito novo para aparecer na listagem dos que tinham direito a receber pensão de reforma…
 
Na noite anterior tomou um comprimido para dormir, um dos poucos na sua existência de vida e ao acordar olhou para dentro e não se lembrou de acordar durante a noite nem tão pouco do acordar com impulsos corporais desconhecidos, também nem sequer do ressonar do cão ou do cio da gata se lembrou, apenas aquela impressão na boca que admitiu ser do comprimido. Iria evitar tomar outro ou não queria voltar a tomar.
Sofre calado, nem sequer pensa no que tem para pagar, vive os dias como se à volta fosse o Iraque, sente as bombas a rebentarem perto cada vez mais perto, mas vive, pensa e continua a sonhar, continua a construir planos, não hipóteses mas planos…
Agora até sabe quando é que tem que enviar as contagens da água, da electricidade e do gás, no último dia de cada mês faz a contagem …
Olha o mar, olha o rio e o correr da água já não o descansa, não o acalma como outrora; o Guincho já nada lhe diz! É apenas mar vento e areia, tudo numa corrida desenfreada, não encontra ali calma nem descanso…
Lembra os amigos e as amigas, mas não lhes telefona, é preciso poupar, é preciso não gastar o que não se tem … a ganhar…
Vai à net ver se tem correspondência, o último vício de luxo a que se dá a si próprio… não quer perder as ligações com o mundo
Lembra-se dos presos políticos que escreviam, que liam para se manterem vivos e assim faz; em dois dias consegue ler o Agualusa nos momentos em que está em casa, num domingo lê de uma assentada os Cem Anos de Solidão, lê as teorizações entre a existência ou não, de Céu e de Deus …
Não se sente triste, não perdeu a esperança, nem anda a fugir… apenas se retrai… guarda para amanhã o que poderia fazer hoje na esperança de que o amanhã vai chegar mais livre e sem o peso das obrigações por cumprir…
Olha para trás e consegue ver onde foi o cruzamento em que se despistou, e se fosse hoje que faria? O mesmo ou tornar-se-ia diferente… abandona o pensamento e segue o seu rumo… não mais parou de cair e levantar, mas cada vez que cai mais difícil é levantar…
O onde, o como, está decidido em consonância, só falta o quando…
Não foge! Nem esquece! Sabendo que um dia vai voltar…

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