quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Memórias do inconsciente


Acordou assarapantado. Que raio de sonho aquele. Olhou a janela, ainda era noite escura, escutou o corpo e não sentiu necessidade de se levantar para aliviar a bexiga. Contudo o corpo estava frio, mas não se lembrava de se ter deitado com os pés frios, o edredom era bom, e as lembranças ténues do sonho a permanecerem vivas à sua frente não o deixavam aquietar-se e dormir o resto do tempo que ainda tinha para usufruir. Fechou o olhos e as imagens do sonho renasciam, olhando o teto via a imagem do Comandante de Batalhão, recordou que nunca se gostaram ou se apreciaram. Desde o longínquo dia em que se apresentou em Chaves para comandar o Batalhão, com os chavões da praxe militar, do enaltecer a Pátria una e indivisível, que merecia todo o entusiasmo em defende-la dos inimigos externos que financiavam os turras, com o objectivo de atacarem a nossa Pátria independente, a nossa cultura, destruírem a nossa moral colectiva do Minho até Timor. Aconselhando ele, aos que pensassem de maneira diferente a guardarem as ideias e os ideais numa caixinha de algodão. Foi o primeiro encontro e único em Chaves, para depois em Viana do Castelo ter sempre sorte, ou porque estava de serviço à Porta de Armas no forte de Santiago da Barra., ou porque se desenfiava sem ser notado, nas reuniões e convívios dos oficiais. Assim se passaram os meses em Chaves e em Viana do Castelo até que ao passar com a companhia na sede em Chitembo, o Comandante de Batalhão chamou o Capitão que depois o chamou, porque o senhor não sabia quem era aquele Alferes, não se lembrava dele. Ele não gostou, mas também não gostava dele, o hálito dele fazia-lhe lembrar o hálito de um padre na confissão.
O tempo passava, as operações de companhia ou de batalhão sempre a castigaram mais a sua companhia. Só passados muitos anos soube que o senhor comandante também não gostava e perseguia o Capitão da companhia.
Depois de ter dado apoio logístico numa primeira base no Chinhondze aos Dragões de Silva Porto, cavalaria com cavalos puro sangue sul africanos, constituída por militares da província (filhos de gente bem na sua generalidade), sou-lhe aos ouvidos ter sido proposto pelo Capitão dos Dragões um louvor, mas em vez do louvor o Comandante de Batalhão aproveitou ter conhecimento, por algum informador oculto, de um desaguisado entre o seu grupo de combate e o grupo do Pinto da Costa numa recolha do Grupo de GE´s407 e, quis castiga-lo com a perda de férias, o que não veio a acontecer-lhe felizmente.
Por ele, evitavam passar na sede de Batalhão e cumprimentar os oficiais amigos, beber uma Cuca, dar dois dedos de conversa.
Depois do 25 de Abril os homens do sistema da guerra colonial, viraram quase todos democratas fazendo-se passar por homens do Movimento de Capitães. Mas com a sua ambição a subir na hierarquia militar, nunca os defendeu, sempre pronto a enviar-los para as diversas frentes de combate. Quando poderíam ficar por ali ou rodareem para o litoral de Lobito, foram mandados para a fronteira norte com o Congo de Mobotu, onde a CCS se instalou no grande quartel de Maquela do Zombo, sendo a sua companhia destacada para guardar uma ponte sobre o rio Zadi. Também nesse tempo nunca participou em jantares ou festas de oficiais na sede do Batalhão.
E quando já estavam no Grafanil reduzidos aos militares que tinham saído de Viana do Castelo, ainda o senhor ofereceu o batalhão operacional para fazer guarda aos comboios de Luanda para Melanje. Essa foi a última reunião em que se enfrentaram com o senhor a contornar a situação, obrigando os furriéis que não estavam representados na reunião, a serem eles a comandar a escolta.
Vi-o um dia mais tarde em Lisboa na zona do Conde Barão, mas não lhe falou. O senhor Comandante de Batalhão já estava na reserva e arranjou um tacho como director de pessoal numa empresa que estava intervencionada ou mesmo nacionalizada. Já deixou esta vida há muitos anos, que possa descansar em paz, o que não será fácil, mas não lhe apareça mais em sonhos, pois nunca serão agradáveis, como nunca foi a convivência enquanto militares, ele militar de carreira e ele militar-obrigado-à força.
Entretanto chegou a hora de se levantar, espreitar o tempo e, tratar de ir com a minha amiga para a rua passear e descomprimir a ansiedade que a vida em apartamento lhe proporciona, desejando ao mesmo tempo o inconsciente não lhe liberte memórias incomodas como a daquela noite.

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