segunda-feira, 25 de março de 2019

Amigos










Nascemos na mesma rua, no mesmo ano, no mesmo mês com uma diferença de uma semana, eu a 22 e ele a 29. Eu, filho de um guarda fiscal, o mais novo dos dois filhos. Ele, filho de um alfaiate, o mais novo dos cinco filhos. Se os meus pais eram oriundos da Beira Baixa, os dele tinham vindo anos antes da Beira Alta, ambos em busca de melhores oportunidades e condições de vida para si e para os seus filhos. A vinda do interior para a capital, para o litoral, é quase tão antiga como a fundação do Reino, não é um problema de deslocação das populações recente.
Quando miúdos brincávamos com os outros rapazes na rua. Naquele tempo as meninas ficavam no recato da casa, a rua era para os rapazes sob o olhar vigilante das mães ou irmãs mais velhas. Foi assim a rua o nosso infantário, a nossa pré-primária, o livro sem folhas de papel onde aprendemos em cenário real todas as aventuras, todas as descobertas possíveis, incluindo o fugir à polícia quando andávamos no meio da calçada de basalto a dar pontapés numa bola de trapo envolta por uma meia de vidro que já não servia para as senhoras usarem nas pernas, ou no relvado que pertencia à Companhia das Águas, hoje pomposamente chamada EPAL.
A nossa rua era uma espécie de península rodeada por fábricas e pela linha do comboio, só com duas saídas para a Avenida maior que a ligava ao mundo exterior.
Quando chegamos aos seis anos entramos para a escola pública do Sobe-e-Desce, que ficava entre a estação de comboio dos Olivais e Moscavide. Alguns outros rapazes foram para o externato privado em Moscavide, mas nós fomos para o ensino público. Fazíamos o caminho de ida e vinda a pé, sendo inicialmente na ida acompanhados por uma das mães dos que andávamos na escola do Sobe-e-Desce, por causa do comboio rápido para o Porto que passava na estação dos Olivais entre as oito e meia e as nove. O caminho era feito já com o bibe da farda vestido, pela rua da Centieira passando pelo arco da Rua Nova subindo-a para depois chegarmos à passagem de nível na estação de comboio dos Olivais e, assim à rua que nos levava a Moscavide a meio da qual ficava a Escola Primária.
Quando entramos para a primeira classe tivemos como professora uma senhora algarvia de sua graça Aline. Só lá andei na primeira e na segunda classe já que o meu pai foi promovido a segundo cabo, colocado em Porto Novo, Vimeiro, mudando-se depois para o Baleal, fazendo eu a terceira e quarta classe em Ferrel com uma professora de sua graça Carlota, que também me deu explicações para o exame de admissão à Escola Industrial e Comercial de Peniche. Já o meu amigo fez da primeira à quarta classe e preparação para o exame de aptidão à Escola com a senhora professora Aline sempre na escola primária do Sobe-e-Desce.
Esta semana ao almoçarmos uma açorda de sável com o dito peixe frito a preceito, recordamos muita coisa das nossas vidas. Nessas lembranças ele recordou-me o tempo em que eu apanhava muitas reguadas até que um dia gritei que tinha fome pondo a turma toda a rir. Lembro-me de apanhar tantas reguadas que depois era o meu irmão que andava um ano à nossa frente que me levava a mala pois as minhas mãos não a seguravam. Andávamos a aprender a escrever nos cadernos de duas linhas. Eu começava a escrever mas depois por um problema de visão não conhecido continuava fora das duas linhas, daí às reguadas pela professora Aline era um instante. Assim andei até que um dia me levaram ao médico, o problema detectado e resolvido, embora até hoje não consiga fazer um risco direito, uma esquadria bem feita. Já em Ferrel também tive uma outra cena de reguadas. Ali a escola era de manhã e à tarde. Numa dessas tardes depois de um ditado dei tantos erros que as reguadas que apanhei e o choro que chorei foi ouvido em casa pela minha mãe, pois morávamos perto da escola. Ao chegar a casa, para azar meu a professora Carlota morava mesmo ao lado de nós, minha mãe quis saber o que se tinha passado, quem tinha chorado tanto, mas ao tomar conhecimento das causas e de quem tinha chorado ainda me pôs de castigo.
Muitas outras histórias e castigos apanhei, só se perdendo os que ficaram no ar. Ontem e hoje sem traumas, nem revolta, antes agradecido com amor a todos os que por bem me souberam castigar.
Voltamos para Lisboa a fim de continuarmos a estudar no então Instituto Comercial. Quis o destino que voltássemos para a mesma rua onde tínhamos nascido e vivido os primeiros anos. Nascemos, eu e meu irmão, num quarto alugado no número 25, passando depois de eu nascer para a casa no 94 de onde saímos para Ferrel e depois Lugar da Estrada, regressando anos depois ao 114 e reatando a amizade de crianças.
O meu irmão já no Instituto Comercial, eu na Escola Patrício Prazeres a fazer a secção preparatória para a admissão ao Instituto e o meu, nosso, amigo no Escola Comercial Veiga Beirão. Quando estudávamos todos no Instituto, o meu amigo ou por se ter atrasado, ou se ter esquecido de entregar as habilitações literárias, numa época em que passou mal pois viu a morte levar-lhe a mãe, foi incorporado na tropa como soldado. Deram-lhe uma especialidade na área das transmissões, mas quando se viu mobilizado para a guerra, pensou e decidiu dar o salto fugindo para a Bélgica. Eu e o meu irmão tratamos de obter as suas habilitações literárias para a família lhas fazer chegar a onde ele estava.
De novo estávamos separados. Felizmente a vida correu-lhe de feição, trabalhando e estudando voltou depois de Abril acabando por ser formar em Medicina.
Casamos, cada um com sua família, vivendo as nossas vidas, até que nos voltamos a reencontrar bastantes anos mais tarde por Telheiras. Ele médico de clínica geral no Centro de Saúde em Santa Iria vinha fazer alguns fins de semana ao posto do Centro de Saúde de Alverca, onde eu sem médico de família atribuído esperava pelas suas vindas. Foi assim que antes de ele se reformar lhe pedi para me mandar para as consultas de várias especialidades no Hospital de Vila Franca de Xira. Uma dessas especialidades é a de Urologia, ficando eu a dever-lhe aquilo que nenhum dinheiro pode pagar, gratidão. Outros colegas dele diziam-me para não me preocupar com os quistos que me tinham aparecido na próstata. Ele, também me disse para não me preocupar, mas fez a carta ao hospital que pouco tempo depois me chamou. Há coisas que nunca se poderão esquecer. Essa carta fez toda a diferença.
Nascemos na mesma rua, no mesmo ano, no mesmo mês com uma diferença de uma semana, eu a 22 e ele a 29.

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