
Nascemos
na mesma rua, no mesmo ano, no mesmo mês com uma diferença de uma
semana, eu a 22 e ele a 29. Eu, filho de um guarda fiscal, o mais
novo dos dois filhos. Ele, filho de um alfaiate, o mais novo dos
cinco filhos. Se os meus pais eram oriundos da Beira Baixa, os dele
tinham vindo anos antes da Beira Alta, ambos em busca de melhores
oportunidades e condições de vida para si e para os seus filhos. A
vinda do interior para a capital, para o litoral, é quase tão
antiga como a fundação do Reino, não é um problema de deslocação
das populações recente.
Quando
miúdos brincávamos com os outros rapazes na rua. Naquele tempo as
meninas ficavam no recato da casa, a rua era para os rapazes sob o
olhar vigilante das mães ou irmãs mais velhas. Foi assim a rua o
nosso infantário, a nossa pré-primária, o livro sem folhas de
papel onde aprendemos em cenário real todas as aventuras, todas as
descobertas possíveis, incluindo o fugir à polícia quando
andávamos no meio da calçada de basalto a dar pontapés numa bola
de trapo envolta por uma meia de vidro que já não servia para as
senhoras usarem nas pernas, ou no relvado que pertencia à Companhia
das Águas, hoje pomposamente chamada EPAL.
A
nossa rua era uma espécie de península rodeada por fábricas e pela
linha do comboio, só com duas saídas para a Avenida maior que a
ligava ao mundo exterior.
Quando
chegamos aos seis anos entramos para a escola pública do
Sobe-e-Desce, que ficava entre a estação de comboio dos Olivais e
Moscavide. Alguns outros rapazes foram para o externato privado em
Moscavide, mas nós fomos para o ensino público. Fazíamos o caminho
de ida e vinda a pé, sendo inicialmente na ida acompanhados por uma
das mães dos que andávamos na escola do Sobe-e-Desce, por causa do
comboio rápido para o Porto que passava na estação dos Olivais
entre as oito e meia e as nove. O caminho era feito já com o bibe da
farda vestido, pela rua da Centieira passando pelo arco da Rua Nova
subindo-a para depois chegarmos à passagem de nível na estação de
comboio dos Olivais e, assim à rua que nos levava a Moscavide a meio
da qual ficava a Escola Primária.
Quando
entramos para a primeira classe tivemos como professora uma senhora
algarvia de sua graça Aline. Só lá andei na primeira e na segunda
classe já que o meu pai foi promovido a segundo cabo, colocado em
Porto Novo, Vimeiro, mudando-se depois para o Baleal, fazendo eu a
terceira e quarta classe em Ferrel com uma professora de sua graça
Carlota, que também me deu explicações para o exame de admissão à
Escola Industrial e Comercial de Peniche. Já o meu amigo fez da
primeira à quarta classe e preparação para o exame de aptidão à
Escola com a senhora professora Aline sempre na escola primária do
Sobe-e-Desce.
Esta
semana ao almoçarmos uma açorda de sável com o dito peixe frito a
preceito, recordamos muita coisa das nossas vidas. Nessas lembranças
ele recordou-me o tempo em que eu apanhava muitas reguadas até que
um dia gritei que tinha fome pondo a turma toda a rir. Lembro-me de
apanhar tantas reguadas que depois era o meu irmão que andava um ano
à nossa frente que me levava a mala pois as minhas mãos não a
seguravam. Andávamos a aprender a escrever nos cadernos de duas
linhas. Eu começava a escrever mas depois por um problema de visão
não conhecido continuava fora das duas linhas, daí às reguadas
pela professora Aline era um instante. Assim andei até que um dia me
levaram ao médico, o problema detectado e resolvido, embora até
hoje não consiga fazer um risco direito, uma esquadria bem feita. Já
em Ferrel também tive uma outra cena de reguadas. Ali a escola era
de manhã e à tarde. Numa dessas tardes depois de um ditado dei
tantos erros que as reguadas que apanhei e o choro que chorei foi
ouvido em casa pela minha mãe, pois morávamos perto da escola. Ao
chegar a casa, para azar meu a professora Carlota morava mesmo ao
lado de nós, minha mãe quis saber o que se tinha passado, quem
tinha chorado tanto, mas ao tomar conhecimento das causas e de quem
tinha chorado ainda me pôs de castigo.
Muitas
outras histórias e castigos apanhei, só se perdendo os que ficaram
no ar. Ontem e hoje sem traumas, nem revolta, antes agradecido com
amor a todos os que por bem me souberam castigar.
Voltamos
para Lisboa a fim de continuarmos a estudar no então Instituto
Comercial. Quis o destino que voltássemos para a mesma rua onde
tínhamos nascido e vivido os primeiros anos. Nascemos, eu e meu
irmão, num quarto alugado no número 25, passando depois de eu
nascer para a casa no 94 de onde saímos para Ferrel e depois Lugar
da Estrada, regressando anos depois ao 114 e reatando a amizade de
crianças.
O
meu irmão já no Instituto Comercial, eu na Escola Patrício
Prazeres a fazer a secção preparatória para a admissão ao
Instituto e o meu, nosso, amigo no Escola Comercial Veiga Beirão.
Quando estudávamos todos no Instituto, o meu amigo ou por se ter
atrasado, ou se ter esquecido de entregar as habilitações
literárias, numa época em que passou mal pois viu a morte levar-lhe
a mãe, foi incorporado na tropa como soldado. Deram-lhe uma
especialidade na área das transmissões, mas quando se viu
mobilizado para a guerra, pensou e decidiu dar o salto fugindo para a
Bélgica. Eu e o meu irmão tratamos de obter as suas habilitações
literárias para a família lhas fazer chegar a onde ele estava.
De
novo estávamos separados. Felizmente a vida correu-lhe de feição,
trabalhando e estudando voltou depois de Abril acabando por ser
formar em Medicina.
Casamos,
cada um com sua família, vivendo as nossas vidas, até que nos
voltamos a reencontrar bastantes anos mais tarde por Telheiras. Ele
médico de clínica geral no Centro de Saúde em Santa Iria vinha
fazer alguns fins de semana ao posto do Centro de Saúde de Alverca,
onde eu sem médico de família atribuído esperava pelas suas
vindas. Foi assim que antes de ele se reformar lhe pedi para me
mandar para as consultas de várias especialidades no Hospital de
Vila Franca de Xira. Uma dessas especialidades é a de Urologia,
ficando eu a dever-lhe aquilo que nenhum dinheiro pode pagar,
gratidão. Outros colegas dele diziam-me para não me preocupar com
os quistos que me tinham aparecido na próstata. Ele, também me
disse para não me preocupar, mas fez a carta ao hospital que pouco
tempo depois me chamou. Há coisas que nunca se poderão esquecer.
Essa carta fez toda a diferença.
Nascemos
na mesma rua, no mesmo ano, no mesmo mês com uma diferença de uma
semana, eu a 22 e ele a 29.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.