sexta-feira, 21 de outubro de 2022

22.05.26

 


Acordou cedo como é o seu costume de todos os dias de há muitos anos. Tantos que já perdeu o conto ao tempo.

Acordou e despachou-se da casa de banho porque o seu aparelho de comunicação e também de escrita dos seus rascunhos, estava com a bateria quase em baixo. Precisou de o pôr a carregar enquanto passeou com a Sacha pelas ruas da urbe.

Pelos arrabaldes da cidade grande raras são as árvores que entre elas fazem nascer silêncios, pois quase não se ouve o chilrear da passarada. Tudo o que se ouve é a correria dos seres humanos num desafinar de tons, fechados nas suas gaiolas de desejos, preocupadas com o seu prazer, vão correndo no bulício próprio das cidades grandes, onde as multidões se deixam parametrizar de acordo com as falsas modas que o mercado lhes dita para que alegremente levem a vida na ilusão do «ter». O «ter» que as faz consumir consumindo, criando desperdícios que a Natureza não só não aprecia como não gosta e rejeita.

As saudades do seu canto avolumam-se. Já no dia anterior ao regresso à cidade arrabalde da cidade grande sentia saudades do seu canto, da atmosfera simples que nele existe e o rodeia. Atmosfera que, por mais que procure outra idêntica não a encontra na cidade grande, nem na sua vizinhança, nem tão pouco o mar já lhe dá um sentir de emoções semelhantes.

Contudo, gosta daquele mar que o viu crescer, fazer-se homem e para onde um dia voltou com a família no mês de férias que as leis do mercado lhe concediam anualmente na ilusória conquista da felicidade. Gosta de ouvir a sinfonia das ondas arrebentando na areia. Ondas quanto maiores, quanto mais força têm na rebentação mais o cativam, lhe fazem renascer o sentimento de uma calma que há muito o abandonou, também ele parametrizado pelos objetivos invisíveis do mercado onde trabalhou que nem galego para dar condições de futuro às suas filhas, nascidas sem serem ouvidas do ato de amor em que foram geradas. Não sabia ele que a preocupação com o prazer criado pelas leis ocultas do mercado lhe cortavam o sonho da felicidade sonhada. Quando jovem desafiava aquelas ondas grandes, ora mergulhando, introduzindo-se nelas, ora escalando-as para depois sentir a sensação ilusória do vazio ao descê-las, aguardando pela onda seguinte. Tudo sempre sob os olhos atentos do velho banheiro daquela praia, cujo nome é em si uma Consolação. Recordações, lembranças de um tempo em que os jovens respeitavam aprendendo atentamente as instruções dadas pelo velho banheiro, conhecedor dos segredos e dos encantos daquele mar tão grande e belo, homem de grande sabedoria na sua transcendência, no seu ensinar.

Agora, ao ter entrado na reta final que um dia fará soar o sinal da meta, dia em que a água secará no seu corpo para o mesmo ser reduzido a pó, em que a sua dualidade se separa definitivamente selando o fim desta caminhada terrena, caminhando na outra margem da vida na travessia do deserto, aprende a aprender com as coisas simples, com pessoas simples de vida pouco importantes, que um dia também a elas a vida lhes ensinou o aprender aprendendo fora dos livros, nas lutas diárias da sobrevivência, com os mais velhos de então, quantas vezes analfabetos à luz do pensamento dominante. É lá, no interior esquecido há muito pelos vários poderes, onde possui seu canto que se relembrou a reaprender o sabor do simples viver vivendo. Lá, onde tudo o que é tem uma luz própria, até as velhas oliveiras, que já viram outras vidas humanas terminarem a sua caminhada, lhe ensinam a escutar as falas dos ventos anunciando os abençoados pingos de chuva. Naquelas terras de sequeiro onde as estações quase se resumem a duas, a do frio gelado e a de forno quando o calor aperta, muita coisa vai aprendendo de forma graciosa, com as gentes simples que teimam em resistir, vivendo com o que a Natureza lhes permite obter daquelas terras pobres de água.

Sentado à sombra das árvores no jardim da cidade arrabalde da cidade grande nem os pássaros se ouvem nos seus trinados no seu chilrear, fecha os olhos e deixa o pensamento voar de novo para onde a brisa se aquieta aguardando a chegada da noite, numa paz colorida com o chilrear dos pardais em coro.

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