quarta-feira, 9 de junho de 2021

21.06.09

 



No final do dia, depois do tempo de trabalho dela, falámos. As coisas do costume nestes dias de aniversário entre um pai e uma filha. Falámos não só essas coisas como várias outras e entre essas outras coisas faladas a meio da conversa repeti-lhe o que já disse a outros e outras jovens, no caso, eu não gostaria de ter 44 anos agora. Nem 44 e ainda menos 20 ou 30 anos, preferindo ter os meus 70 anos. Muitos poderão não compreender, outros acharão que sou um parvo. Não me importo não quero ser mais novo do que sou.

Nasci no final de 1950, quando reinava no meu país o conceito salazarista de "Deus Pátria e Família" que não deixava o país respirar vivendo-se numa santa miséria abençoada por um clero tão retrógrado como o velho ditador. Joguei à bola na rua com bolas feitas de trapos em meias de vidro que as senhoras já não usavam nem tinham já arranjo. Na rua calcetada em pedras de basalto as sarjetas serviam de balizas aos jogos de hóquei sem patins e quando era golo tirávamos com as mãos a bola da sarjeta. Na rua aprendi a defender-me dos mais velhos ou dos outros com manias de valentões, sem ir para casa a chorar queixando-me do que me fizeram ou disseram na rua ou mesmo na escola. Aprendi também a fugir à policia quando esta aparecia por lá. Vi aparecer a televisão a preto e branco no clube lá da rua, onde ia aos domingos a tarde assistir pagando com uma moeda de 50 centavos o direito de ver aquela coisa extraordinária. Na escola primária pública aprendi a desenhar as letras e os números assim como o que se podia fazer com eles ou seja a descoberta de um mundo com vida sempre em evolução; decorei a tabuada de somar de multiplicar e com ela aprendi também a subtrair e a dividir fazendo contas de cabeça sem usar os dedos como auxiliares. Aprendi a história dos nosso reais. Sabia o nome das serras, dos rios e seus afluentes assim como das estações das muitas linhas férreas. Nada disso me traumatizou ou impediu de crescer. Aos quase oito anos conheci o mar de verdade na bonita praia do Baleal, quando nos mudamos com a bagagem às costas para Ferrel que nesse tempo dos anos cinquenta distava cerca de um quilómetro do Baleal. Entre a escola primária e as férias aprendi tantas coisas que ficaram guardadas nas minhas células quânticas do cérebro. Coisas que no mundo de hoje são para muitos horrorosas mas que fizeram parte do crescimento da minha geração. Jogávamos à bola descalços porque a maioria dos rapazes não usavam sapatos por dificuldades financeiras de seus pais, mas éramos todos iguais; quando a professora primária faltava também íamos para o pinhal subir aos ninhos dos pássaros para roubarmos e comermos os ovinhos antes de ficarem chocos. Roubávamos penas às galinhas para armar ratoeiras aos pássaros quando os desgraçados andavam loucos para fazerem o ninho. Bebíamos a agua dos ribeiros quando tínhamos sede. Nas férias grandes a pé ou tentando enganar o revisor da carreira lá íamos, os dois irmãos, para a praia, onde aprendemos a nadar sem ninguém nos ensinar, aprendizagem naif. O conselho dos pais que só depois da digestão feita (duas a três horas) facilmente era esquecida e substituída por “se molhei o pé e nada sucedeu então a digestão está feita e vamos ao banho”. A saltar das rochas para o mar «virei o bucho» segundo a curandeira de Ferrel que me tratou depois de a medicina não conseguir resolver o problema de saúde, que naquele tempo quando íamos ao médico ele nos mandavam deitar a língua de fora para olhar a garganta e olhava-nos também a íris dos olhos. Apanhei a vacina contra o poliomielite na escola secundária já em Peniche onde entrei depois de ter feito o exame da quarta classe e a admissão à Escola Industrial e Comercial de Peniche, sem ser preciso perguntar aos pais se os filhos podiam tomar a vacina. Entrei na escola a pedalar de bicicleta ainda com nove anos fazendo o caminho entre Ferrel e Peniche muitas vezes sozinho, pior mesmo era quando saía da escola às dezoito horas já noite e chovendo tinha que fazer os oito quilómetros até casa. Sózinho a descer o Viso num sábado em que ia para a Mocidade Portuguesa tentei sem mãos no guiador passar por cima de uma pedra solta e espalhei-me andando vários meses a tirar sangue pisado do joelho e vários anos a coxear quando fazia o que me estava proibido como o jogar à bola. Na tal Mocidade Portuguesa fomos, os manos, por dois anos ao acampamento nacional da organização nos campos de Aljubarrota onde para além das atividades lúdicas se prestavam provas para os graus que a organização tinha e lá nos punham a correr à volta dos microfones da Emissora Nacional de braço estendido gritando «nós somos os melhores».

De volta à cidade que me viu nascer para continuar a estudar a vida pacata da aldeia ficou para trás e o mundo abria-se com novos horizontes, novas descobertas, novos sonhos para o mundo e para a vida dos portuguesas que continuava acorrentada à vida de miséria para a grande maioria das famílias portuguesas. A revolta ganhava raízes dentro do peito. A farsa das eleições convocadas pelo então sucessor de Salazar, Marcelo Caetano, em 1969 são o salto para a política. Aos 20 anos entrei na EPI em Mafra. Aos 21 parti para a guerra comandando um grupo de jovens tão jovens quanto eu. Parti consciente de que não estava no lado mais justo da guerra se é que existe essa coisa de lado justo numa guerra. O importante era ir e voltarmos todos sãos e salvos. Conheci o medo não só de morrer mas pior ainda o medo de algum daqueles jovens que confiavam em mim poderem morrer. Sentimentos que me fizeram crescer não só como homem mas como um homem a cada dia mais revoltado com a situação que se vivia. O arame farpado foi uma escola para a vida. O 25 de Abril uma alegria, uma quase certeza de que iríamos voltar todos para as nossas vidas. Voltámos mas já não éramos os mesmos que um dia partimos, a guerra surda e muda voltou com muitos de nós, principalmente daqueles que um dia sentiram os «pintelhos do cú a bater palmas». Vivi o sonho da utopia que estava logo ali ao virar da esquina. Assisti à vitória do invernoso 25 de Novembro. Da vivência do sonho da utopia conheci e conheço muitos dos que se adaptaram e de ultra revolucionários se converteram em "pessoas de bem" ou situacionista sem memória, liberais ao centro sem limites. Trabalhei sempre em empresas privadas. Quando não me pagavam o que achava ser justo procurava outro trabalho, saltando de empresa em empresa até que um dia conheci o desemprego e se na semana anterior duas empresas de caça cabeças me convidavam para ir a entrevistas com bilhete de avião pago, no dia seguinte ao acordo para deixar a empresa já ninguém me conhecia. Vivi bem sem conhecer dificuldades quando trabalhava. Depois conheci a travessia do deserto cometendo erros atrás de erros. Passei mal. Tornei-me um solitário. Hoje vivo sem pressa não gostando e não querendo ser mais novo do que sou porque tudo o que vivi fez de mim o que sou, um desalinhado, uma ovelha ranhosa mais do que tresmalhada que gosta de ser assim mesmo. Desalinhado, não tenho nem vou ter qualquer filiação partidária.

Não sou comunista tão pouco bloquista, não sou socialista, não sou popular tão pouco democrata-cristão, não sou social-democrata moderno, muito menos liberal e ainda muito menos saudosista do fascismo à moda de Salazar-Caetano. Sou republicano, sem religião porque nas minhas conversas com o Deus e os deuses do além não sinto necessidade de intermediários duvidosos. Sou muito mais à esquerda que ao centro. Não gosto do centro. O centro é híbrido, como tal as suas sementes nunca reproduziram bons frutos e factos são factos. Ao centro não nos deixam evoluir para uma sociedade mais decente apenas nos empatam para nos comerem os miolos e nos chuparem a carne até ao tutano. 

Por tudo isto não viveria hoje sendo jovem todas as alegrias e conquistas que vivi porque o tempo de vida de Abril não tem comparação possível com estes tempos de agora. Sou como sou sentindo-me bem com a minha idade.



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