quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

A luta


Há mesma hora de todos os dias, qual despertador automático o corpo deu sinal. Levantou-se sentindo o frio da madrugada que está prestes a acabar para uma nova manhã chegar. Gosta deste tempo no tempo. A noite pouco lhe diz, o recomeçar do dia na transformação da noite em dia é e sempre foi o seu tempo, o recarregar das energias que os céus lhe dão numa permuta graciosa.
Sentado na sanita pensa na vida, no que ela lhe deu e o que terá ainda para lhe dar. Já não espera muito desta sua viagem terrena. Olhou as horas no telemóvel e deixou-se ficar esfregando os olhos e ganhando coragem para se lavar. Mais uma vez estava longe, sentindo a geada matinal que deverá ter caído lá nas terras raianas. À sensação de seis graus que o esperavam na rua, viu num relance as temperaturas que o esperariam quer no litoral penicheiro (sempre mais ameno), quer na sua zona raiana, saindo assim para a rua com a sensação não dos seis mas dos três graus depois de uma mínima de zero. Saiu com a sua companheira para a volta matinal, como mais um dia de vida ausente na cidade grande. Os dois irão caminhando lado a lado.
A sua amiga e companheira espera-o deitada à porta aguardando que ele lhe faça as habituais festas no peito e na barriga como se fossem os beijos para um dia bom.
Ao lavar-se olhou-se no espelho verificando se o corpo não apresenta qualquer sinal estranho. Toda a atenção é preventiva e todo o cuidado é pouco. A maneira de olhar a vida mudou muito, depois da notícia do carcinoma. É certo que a primeira batalha parece ter sido ganha, outras se seguirão como prevenção. Anda a aprender a viver de novo com o corpo que pela idade vai ficando cansado de tanta luta. Uma luta constante dele consigo próprio. Se a incontinência urinária parece estar quase controlada, resta-lhe a dúvida de como se irá comportar. As pequenas gramas da mente são extraordinárias no seu funcionamento mas, também por vezes perversas, condicionando a forma como olhamos a vida e nos relacionamos com os outros e no caso, consigo próprio. Quando escolheu o trilho da cirurgia, estava consciente das consequências, mas, auto-convencia-se de que iria ultrapassar com sorte esses obstáculos. Uma coisa é pensarmos como irá ser e outra é como é a realidade. Não sendo muita a diferença entre as duas situações está difícil uni-las, tornando-o ainda mais solitário, mais voltado para si próprio numa viagem quase constante ao que foi o seu passado, ao que representa a sua vida actual numa cidade onde a cada dia se sente mais ausente.
A Sacha como que farejando o que lhe vai na alma, caminha a seu lado calmamente, portando-se como ela é uma pastora alemã bonita, aprendendo a obediência, na luta que os dois travam contra a ansiedade que ela apresenta.

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