Há
mesma hora de todos os dias, qual despertador automático o corpo deu
sinal. Levantou-se sentindo o frio da madrugada que está prestes a
acabar para uma nova manhã chegar. Gosta deste tempo no tempo. A
noite pouco lhe diz, o recomeçar do dia na transformação da noite
em dia é e sempre foi o seu tempo, o recarregar das energias que os
céus lhe dão numa permuta graciosa.
Sentado
na sanita pensa na vida, no que ela lhe deu e o que terá ainda para
lhe dar. Já não espera muito desta sua viagem terrena. Olhou as
horas no telemóvel e deixou-se ficar esfregando os olhos e ganhando
coragem para se lavar. Mais uma vez estava longe, sentindo a geada
matinal que deverá ter caído lá nas terras raianas. À sensação
de seis graus que o esperavam na rua, viu num relance as temperaturas
que o esperariam quer no litoral penicheiro (sempre mais ameno), quer
na sua zona raiana, saindo assim para a rua com a sensação não dos
seis mas dos três graus depois de uma mínima de zero. Saiu com a
sua companheira para a volta matinal, como mais um dia de vida
ausente na cidade grande. Os dois irão caminhando lado a lado.
A
sua amiga e companheira espera-o deitada à porta aguardando que ele
lhe faça as habituais festas no peito e na barriga como se fossem os
beijos para um dia bom.
Ao
lavar-se olhou-se no espelho verificando se o corpo não apresenta
qualquer sinal estranho. Toda a atenção é preventiva e todo o
cuidado é pouco. A maneira de olhar a vida mudou muito, depois da
notícia do carcinoma. É certo que a primeira batalha parece ter
sido ganha, outras se seguirão como prevenção. Anda a aprender a
viver de novo com o corpo que pela idade vai ficando cansado de tanta
luta. Uma luta constante dele consigo próprio. Se a incontinência
urinária parece estar quase controlada, resta-lhe a dúvida de como
se irá comportar. As pequenas gramas da mente são extraordinárias
no seu funcionamento mas, também por vezes perversas, condicionando
a forma como olhamos a vida e nos relacionamos com os outros e no
caso, consigo próprio. Quando escolheu o trilho da cirurgia, estava
consciente das consequências, mas, auto-convencia-se de que iria
ultrapassar com sorte esses obstáculos. Uma coisa é pensarmos como
irá ser e outra é como é a realidade. Não sendo muita a diferença
entre as duas situações está difícil uni-las, tornando-o ainda
mais solitário, mais voltado para si próprio numa viagem quase
constante ao que foi o seu passado, ao que representa a sua vida
actual numa cidade onde a cada dia se sente mais ausente.
A
Sacha como que farejando o que lhe vai na alma, caminha a seu lado
calmamente, portando-se como ela é uma pastora alemã bonita,
aprendendo a obediência, na luta que os dois travam contra a
ansiedade que ela apresenta.
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