quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

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Dois dias que marcam a sua vida, a juntar a outros, não muitos. O 23 de Outubro e o 9 de Novembro.
A 23 foi operado. Quatro horas no bloco operatório, com o jovem médico a dizer-lhe mais tarde que foi o doente que mais tempo lhe demorou a operar. Para além da próstata, abriu também a bexiga mas deixou-a bonitinha. Como será uma bexiga bonitinha para um cirurgião? já que ele não tinha, nem tem, qualquer ideia sobre o assunto, e não é pessoa de andar a consultar o Dr. Google. Foi convivendo com as alterações e marcas que a anestesia geral lhe deixou no corpo, observando atentamente uma após outra o seu lento desaparecimento. Não são batalhas ganhas, antes a retirada de elementos químicos estranhos que foram necessários introduzir no seu corpo para que tudo corresse normalmente.
Já o dia 9 marcou-o pela negativa. Andava farto, cansado de andar com o saco junto à perna esquerda. Desde que tomou a decisão da cirurgia que o seu pavor era não sofrer com a algália nenhum percalço que lhe pudesse causar incontinência urinária. Era o seu medo e pavor, por isso aqueles longos dias teve todo o cuidado e mais algum. Por histórias que ouviu tinha medo da dor na retirada da mesma. Chegou o dia, depois do muito incomodo e dor que a porcaria do tubinho na uretra lhe causava. No Centro de Saúde a enfermeira de serviço enquanto explicava e retirava o liquido do balão, tirou-lhe a algália sem dor nem um ui. Como ficou feliz e contente julgando-se livre de todo o qualquer outro incómodo que não a cicatrização das costuras internas. Que engano o seu. Caiu no fundo do poço quando viu que não controlava a urina. Ninguém lhe tinha dito nada sobre o assunto, nem médico, nem enfermeiras, nem amigos, até mesmo o irmão se esqueceu de lhe falar nisso pensando que ele saberia.
Não aceitou a ideia de andar o resto da vida com cuecas absorventes. Lá no fundo do poço olhava para cima, parecendo-lhe que as paredes do mesmo era lisas e brilhantes como se fossem um enorme azulejo. Como iria conseguir subir por aquelas paredes tão lisas, onde a força de vontade parecia escorregar sempre para baixo?
Os momentos de animo que o médico e amigos lhe davam, depressa iam paredes abaixo, quando com ou sem fraldas ou pensos absorventes se deixava “pingar”.
Pingar, o acto, a palavra a qual tinha horror. Olhava o calendário mais amiúde do que alguma vez, depois do regresso da guerra, se lembra de olhar. A um de Janeiro sem terem decorrido dois meses após tirar a algália, ao vestir-se para ir com a amiga dar o primeiro passeio do ano, olha o penso, olha as cuecas lavadas e ocorre-lhe o pensamento de que se os reflexos condicionados funcionam com a sua amiga Sacha, poderão também funcionar com ele e decide não usar o malfadado penso no passeio matinal. Saíram os dois para o frio da manhã e ele não mais pensou que não usava o penso. Voltou feliz por não se ter sujado. No dia seguinte voltou a não usar, mesmo depois de chegar a casa para tomar o pequeno almoço, já que é no levantar depois de estar sentado que mais lhe acontece “o pingo”. Andava feliz e calado, mas ao terceiro dia o maldito “pingo” voltou e sentiu-se de imediato escorregar para o fundo do poço. Nem o facto de a sua sombra lhe dizer que não tinham ainda passado dois meses o conseguia animar.
Assim, olhando o calendário, pensando que ainda falta algum tempo para os três a quatro meses que lhe falam, lá vai andando, às vezes contente e feliz, para de imediato poder cair no poço e ter que erguer-se, agora que as mãos já alcançam a superfície do mesmo, porque as visitas do malfadado “pingo” são mais espaçosas, mas não o largam. Aos conselhos de não fazer esforços com pesos, não liga. O corpo e a mente terão de funcionar compreendendo-se mutuamente, senão a vida deixa de ter sol e lua cheia.
Às batalhas psíquicas com o “pingo” junta-se a sensação de impotência. Era um risco assumido, sabia-o, tinha consciência mas, também tinha esperança de que o jovem médico não lhe cortasse todos os músculos necessários, embora soubesse que era um situação muito delicada e as quatro horas no bloco operatório não deixavam grandes esperanças mas, queria acreditar que a esperança é a ultima a morrer. Hoje, já tem consciência de que não é bem assim, a esperança moribunda ou mesmo morta esta, e ele continua a viver, lutando agora para se adaptar à nova realidade. Claro que há mais vida para lá da… mas não é a mesma coisa. Mais uma batalha interna, onde só ele é o elemento que poderá vencer ou deixar-se abater. Uma nova versão da luta eterna e constante entre os contrários, entre o bem e o mal, entre o vencer ou ser vencido. Não há pois outro caminho, já o interiorizou, mas não esta fácil. É um soco forte no peito que quase o deixa KO.


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