Dois
dias que marcam a sua vida, a juntar a outros, não muitos. O 23 de
Outubro e o 9 de Novembro.
A
23 foi operado. Quatro horas no bloco operatório, com o jovem médico
a dizer-lhe mais tarde que foi o doente que mais tempo lhe demorou a
operar. Para além da próstata, abriu também a bexiga mas deixou-a
bonitinha. Como será uma bexiga bonitinha para um cirurgião? já
que ele não tinha, nem tem, qualquer ideia sobre o assunto, e não é
pessoa de andar a consultar o Dr. Google. Foi convivendo com as
alterações e marcas que a anestesia geral lhe deixou no corpo,
observando atentamente uma após outra o seu lento desaparecimento.
Não são batalhas ganhas, antes a retirada de elementos químicos
estranhos que foram necessários introduzir no seu corpo para que
tudo corresse normalmente.
Já
o dia 9 marcou-o pela negativa. Andava farto, cansado de andar com o
saco junto à perna esquerda. Desde que tomou a decisão da cirurgia
que o seu pavor era não sofrer com a algália nenhum percalço que
lhe pudesse causar incontinência urinária. Era o seu medo e pavor,
por isso aqueles longos dias teve todo o cuidado e mais algum. Por
histórias que ouviu tinha medo da dor na retirada da mesma. Chegou o
dia, depois do muito incomodo e dor que a porcaria do tubinho na
uretra lhe causava. No Centro de Saúde a enfermeira de serviço
enquanto explicava e retirava o liquido do balão, tirou-lhe a
algália sem dor nem um ui. Como ficou feliz e contente julgando-se
livre de todo o qualquer outro incómodo que não a cicatrização
das costuras internas. Que engano o seu. Caiu no fundo do poço
quando viu que não controlava a urina. Ninguém lhe tinha dito nada
sobre o assunto, nem médico, nem enfermeiras, nem amigos, até mesmo
o irmão se esqueceu de lhe falar nisso pensando que ele saberia.
Não
aceitou a ideia de andar o resto da vida com cuecas absorventes. Lá
no fundo do poço olhava para cima, parecendo-lhe que as paredes do
mesmo era lisas e brilhantes como se fossem um enorme azulejo. Como
iria conseguir subir por aquelas paredes tão lisas, onde a força de
vontade parecia escorregar sempre para baixo?
Os
momentos de animo que o médico e amigos lhe davam, depressa iam
paredes abaixo, quando com ou sem fraldas ou pensos absorventes se
deixava “pingar”.
Pingar,
o acto, a palavra a qual tinha horror. Olhava o calendário mais
amiúde do que alguma vez, depois do regresso da guerra, se lembra de
olhar. A um de Janeiro sem terem decorrido dois meses após tirar a
algália, ao vestir-se para ir com a amiga dar o primeiro passeio do
ano, olha o penso, olha as cuecas lavadas e ocorre-lhe o pensamento
de que se os reflexos condicionados funcionam com a sua amiga Sacha,
poderão também funcionar com ele e decide não usar o malfadado
penso no passeio matinal. Saíram os dois para o frio da manhã e ele
não mais pensou que não usava o penso. Voltou feliz por não se ter
sujado. No dia seguinte voltou a não usar, mesmo depois de chegar a
casa para tomar o pequeno almoço, já que é no levantar depois de
estar sentado que mais lhe acontece “o pingo”. Andava feliz e
calado, mas ao terceiro dia o maldito “pingo” voltou e sentiu-se
de imediato escorregar para o fundo do poço. Nem o facto de a sua
sombra lhe dizer que não tinham ainda passado dois meses o conseguia
animar.
Assim,
olhando o calendário, pensando que ainda falta algum tempo para os
três a quatro meses que lhe falam, lá vai andando, às vezes
contente e feliz, para de imediato poder cair no poço e ter que
erguer-se, agora que as mãos já alcançam a superfície do mesmo,
porque as visitas do malfadado “pingo” são mais espaçosas, mas
não o largam. Aos conselhos de não fazer esforços com pesos, não
liga. O corpo e a mente terão de funcionar compreendendo-se
mutuamente, senão a vida deixa de ter sol e lua cheia.
Às
batalhas psíquicas com o “pingo” junta-se a sensação de
impotência. Era um risco assumido, sabia-o, tinha consciência mas,
também tinha esperança de que o jovem médico não lhe cortasse
todos os músculos necessários, embora soubesse que era um situação
muito delicada e as quatro horas no bloco operatório não deixavam
grandes esperanças mas, queria acreditar que a esperança é a
ultima a morrer. Hoje, já tem consciência de que não é bem assim,
a esperança moribunda ou mesmo morta esta, e ele continua a viver,
lutando agora para se adaptar à nova realidade. Claro que há mais
vida para lá da… mas não é a mesma coisa. Mais uma batalha
interna, onde só ele é o elemento que poderá vencer ou deixar-se
abater. Uma nova versão da luta eterna e constante entre os
contrários, entre o bem e o mal, entre o vencer ou ser vencido. Não
há pois outro caminho, já o interiorizou, mas não esta fácil. É
um soco forte no peito que quase o deixa KO.
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