sábado, 29 de janeiro de 2022

22.01.27

Olha a temperatura que o seu aparelho telemóvel lhe dá para os seus três lugares. No litoral mais seis graus que no seu profundo interior raiano. Depois, se disser que sente mais o frio andando nos trilhos da beira rio nos arrabaldes da cidade grande do que quando anda pelas quelhas da Zebreira com as baixas carregadas de geada, não o acreditam, julgam-no tonto ou mal intencionado. Ele que viveu outros frios nas suas sete décadas que leva de muitos invernos e não só.

Em criança nas idas de bicicleta para a escola com as luvas de lã que a mãe lhe fazia e o boné de orelhas para defender os ouvidos das frieiras que o frio húmido de Peniche causava. Pior, quando chovia e chegavam molhados à escola, secando a roupa no corpo que a senhora diretora numa de desprezo pelos pobres estudantes nunca ligou o aquecimento existente. As instalações eram novas e modernas para a época do Estado Novo, tinham aquecimento mas a senhora salazarista impunha regras draconianas aos jovens estudantes e nos cinco anos que lá passou não se recorda de uma única vez em que as referidas instalações tivessem o aquecimento a funcionar. Recorda-se de ter dias de inverno em que o frio e a roupa molhada não deixavam ter "gadanhos" nas mãos para poder tomar nota do que a professora escrevia no quadro ou ditava para sumário.

Depois, quando aos quinze anos deixou os caminhos da escola de Peniche e voltou para a cidade grande que o viu nascer, aprendeu que afinal o frio Penicheiro era bem mais temperado que o frio de Lisboa. Mais húmido mas mais temperado. O frio de Lisboa era mais agreste de uma humidade diferente mas húmido qb.

Quando chegou o serviço militar e foi colocado em Chaves ainda conheceu uma amostra do frio transmontano. Foi coisa passageira. Uns meses depois voltava ao frio húmido do litoral por terras da Serra de S. Luzia em Viana do Castelo.

Estranhamente para o saber de então foi em Angola que conheceu o que era frio frio de verdade. Sabia pelas lições de Geografia Económica dadas pelo grande professor Knapik no velho Cortiço na Rua das Chagas, que Angola tinha vários climas, mas nunca na sua juventude imaginou que na época seca pudesse haver tanto frio como aquele que passou. É certo que estavam sediados no planalto central a mais de 1.500mt de altitude, mas tanto frio nunca imaginou. Então, quando nesse tempo de Abril a Setembro ou Outubro saiam em operações o dormir no mato apenas com saco cama era um dormir sempre de frio para gelado. O acordar de madrugada com frio, o fumar mais um cigarro dentro do próprio saco cama na ilusão do fumo do cigarro poder aquecer o corpo.

Quando voltou no final do mês de Novembro, deixando para trás o tempo que lhe roubaram de vida, os seus pais estavam na Zebreira. Mais uma vez não os informou da sua chegada. Só quando estes ligaram para casa é que souberam que ele já tinha voltado. Foi visitá-los passados uns dias . Andavam os seus pais na apanha da azeitona, vivendo na casa onde a sua mãe nasceu. Uma casa de construção em pedra bem antiga, onde o quarto em que dormiu era telha vã. Voltou a conhecer o frio seco do interior perdido e abandonado à resistência das suas gentes. Ainda foi com os pais apanhar azeitona mas as suas mãos vinham de estarem mais habituadas a acariciar a sua G3 não se adaptaram à apanha, voltando para casa em Lisboa.

Com o passar dos anos, principalmente depois do AVC de sua mãe foi-se habituando ao frio da Zebreira nas visitas que fazia aos seus pais. Pior quando seu pai decidiu ir para o lar e a casa ficou vazia. As casas não gostam de estar vazias e abandonadas, arrefecem ainda mais que o próprio frio que corre no exterior. Elas gostam de se sentirem úteis e aconchegantes aos seres humanos. Quando entramos numa casa vazia, fechada há muito tempo é como se entrássemos no mundo gélido, podendo sentir-se o choro frio das paredes que a sustentam. Aí sim mora a solidão ávida de preencher outros vazios. Por uma vez teve esse sentimento ao chegar à sua casa depois de quase três meses sem a visitar, sem partilhar com aquelas paredes os sentimentos vividos por quantos lá viveram. Estamos no Inverno que é a nossa estação mais fria do ano, onde deveria chover a água abençoada das chuvas que tudo faz renascer, mas as alterações climatéricas e a possível zanga dos deuses para com a humanidade sapiens não nos têm dado essa satisfação. Os campos cheios de uma erva verde rasteira sinónimo de seca são de uma tristeza quer faz doer os olhos

Ontem no seu passeio matinal pelos trilhos da beira rio nos arrabaldes da cidade grande no seu corpo a costura maior deu-lhe sinal. No horizonte uma frente compacta de nuvens. Sentiu a esperança de chuva reanimar. Olhou as previsões do tempo no telemóvel e de novo a tristeza da falta de previsão para a sua amiga chuva como que o desanimou.

 

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