quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

22.07.03

 

Domingo, dia de descanso. A manhã de sábado, foi para ele, de trabalho e alguma tristeza revolta. Com o calor a manifestar-se e o desejo de terminar a limpeza dos “ladrões” das restantes oliveiras, foi para o chão tão cedo quanto pode, pois tem de passear a sua amiga.

Logo no início sentiu o polo a colar-se ao corpo que suava. Nos raros momentos de pausa, para descanso da coluna, reparou no sobreiro do vizinho. Será que está chorando por lhe terem tirado a sua cortiça? Ou será a forma de refrescar a sua feloderme agora exposta, face aos muitos graus que se adivinham para o dia. Lembrou-se de Lavoisier.

Com o avançar do trabalho, sentiu que estava no limite. Ao endireitar-se sentia a ilusão do "pingo". Controlou a incontinência após a cirurgia, mas assim como as costuras dos três buracos efetuados pelo jovem cirurgião, lhe anunciam as mudanças de tempo, o "pingo" ilusório ou real, lhe diz que está no limite do esforço. O "pingo" ilusório ou real, aconselha-o lembrar-se que a idade do corpo não é a idade da mente. Esta pensa ser mais jovem do que a idade real, que seus pais lhe disseram, constando do seu cartão de cidadão. É uma perfeita idiotice sua, pensar que ainda é jovem quando caminha para os setenta e dois anos de vida. Com muito esforço e suor, conseguiu terminar o trabalho a que se propôs. Quando regressou a casa, com o sol do meio dia e meio a pique, notou que não era apenas o polo que estava húmido do suor, também as calças estavam bem húmidas. Apeteceu-lhe meter-se junto com as roupas na máquina de lavar. Mas, como ultrapassa em muito, o limite de peso que a mesma suporta decidiu ser melhor meter-se debaixo do chuveiro.

Almoçou. A seguir colocou o corpo em cima da cama na horizontal. As malvadas cãibras nas mãos e nos pés atormentaram-lhe a sesta de que tanto gosta. Sendo teimoso com o esforço da manhã, mais uma vez o seu sistema o avisava de que não deveria pisar a linha vermelha do sinal, quanto mais ultrapassá-la.

Deixou o pensamento atravessar anos e anos até chegar aos tempos de jovem na Escola Industrial e Comercial de Peniche. Uma sopa no refeitório da escola custava 1 escudo. Quantas vezes apenas almoçava o que a mãe lhe fazia, levando na sua bicicleta a marmita bem embrulhada em papel de jornal, para manter a temperatura até há hora do almoço. Juntava o dinheiro que poupava, não comendo a sopa, para numa das papelarias existentes comprar livros aos quadradinhos dos então heróis na conquista do oeste americano. Ao olhar as velhas oliveiras recorda as histórias desse pequenos livros aos quadradinhos (hoje banda desenhada) , e não só esses. Lutas e guerras entre os interesses dos primeiros colonos que se dedicavam à pastorícia de gado ovino, contra os colonos que chegavam com grandes rebanhos de gado bovino. A forma como uns e outros faziam para a obtenção de pastos novos no final da época seca. Métodos que ele viu serem reproduzidos em Angola pelos naturais. No final da época seca, deitavam fogo ao capim para que mal chovesse os primeiros pingos de chuva os pastos renascessem espontaneamente.

Quando no passado mês de Dezembro andou com o seu amigo Zé na apanha da azeitona, como de imediato estendiam os panais a volta do tronco das oliveiras rodeadas de “ladrões”, de nada se apercebeu, tão entusiasmado andava com a apanha da muita azeitona existente nas velhas oliveiras. Já nas manhãs anteriores em que andou a cortar os “ladrões” se apercebeu que em algumas oliveiras o tronco estava queimado na base. Ontem, o número de oliveiras com a base queimada aumentou consideravelmente. À medida que limpava os troncos, se apercebeu do crime. A tristeza acompanhada de revolta surda, tomou conta do seu estado de espírito. Não sabe quem fez ou ordenou aquele trabalho. Não se lembra de alguma vez ter existido um incêndio por ali, depois nem todas têm o sinal de o tronco na base ter ficado a arder.

Há muitos anos que o terreno entre as oliveiras nunca foi lavrado, mas o gado bovino gostava de lá pastar. A hipotética herdeira, pelo menos fazia-se passar por tal, nunca se interessou pelo estado do mesmo. Seu primo, dono efetivo do chão de oliveiras, após a morte da viúva que viveu com o pai, conversando quando ele lhe levou o azeite que as oliveiras deram, vendeu-lho. Ele, a caminho dos setenta e dois anos aceitou, comprou. Às vezes pensa nos porquês de ter aceite tal compra, pois como lhe disse um dia o seu amigo Zé «ninguém compra trabalho». Mas ele comprou.

O seu pai considerava a oliveira como uma árvore sagrada. Ontem o seu carinho pelas velhas oliveiras passou a um sentimento de amor, talvez idêntico ao do seu pai, ou, por ele influenciado. Não é novo em si esse sentimento. Já o tinha conhecido mas em circunstâncias totalmente diferentes. Aquelas oliveiras foram violentada pelo fogo que os humanos fizeram para a obtenção de pasto para o gado bovino. Esventradas e queimadas resistiram ao mal e continuam vivas. Como? Não sabe. Sabe que nelas colheu azeitona em Dezembro passado. Este ano é fraco. Segundo ouviu dizer na época da chora carregaram, mas vieram uns ventos e a flor caiu sem ser fecundada.

É a vida ingrata e incerta da agricultura.


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