sexta-feira, 18 de março de 2022

22.03.16 - Mães

Ao acordar lembrou-se que tinha deixado as calças penduradas na porta da casa de banho. Vestiu-se, olhou o tempo no telemóvel e espreitou pela janela o céu. Como as poeiras continuavam no ar, saiu de casa com a máscara para se proteger das mesmas.

Seguiram o caminho normal de todas as manhãs. Já as mesmas pessoas de todas as manhãs chegavam e partiam para os seus locais de trabalho. Era um pouco mais cedo que nos dias anteriores. As poeiras em suspensão no ar dão uma tonalidade à luz esquisita agoirando desgraças.

Enquanto caminhava recordou o sofrimento da sua mãe quando ele esteve na guerra em Angola. Não teve coragem de se despedir dela. Nem dela nem do seu pai. Só o irmão com os primos da Azambuja estavam presentes no aeroporto do Figo Maduro na noite em que embarcaram para o destino incerto daquela guerra sem sentido, de onde tantos inocentes lá ficaram abandonados, outros regressaram em caixões e outros ainda inválidos para o resto das suas vidas de deficientes militares. A sua mãe chorou lágrimas que ele não viu, não quis ver porque não teve coragem. Tinha decidido que iria para a guerra. A ideia do desertar tinha ficado para trás. Aquela guerra não era sua nem dos seus soldados, quase todos ainda mais novos que ele próprio nos seus vinte e um anos. Contudo a oposição mais séria ao regime era na altura favorável ao não desertar. Cada oposicionista podia desempenhar naquela guerra o papel de consciencializar os seus camaradas da injustiça não só da guerra como do regime que nos oprimia com mão de ferro.

Por duas vezes no dia do embarque olhou a casa nos Olivais onde vivia com os pais e o irmão mais velho, que por andar a estudar em económicas tinha pedido espera do serviço militar. Por duas vezes o coração bateu dorido de uma dor que nem sabe descrever. Os olhos choraram lágrimas de revolta que ninguém viu, imaginando a dor, os ais, o choro de sua mãe quando visse o seu irmão com os primos da Azambuja entrarem em casa aquela hora da noite.

Hoje, ao caminhar, ao recordar o sofrimento de sua mãe, lembrou-se do sofrimento de muitas mães, ucranianas e russas que têm os seus filhos a combaterem-se de morte numa guerra que não lhes pertence. As mães ucranianas sofrem com medo de perder os seus filhos que combatem na defesa do seu país contra o invasor russo. Já muitas mães russas sofrem o medo de perderem os seus filhos que foram contrariados, obrigados, para aquela guerra de invadir um país vizinho. Mães que de um lado e do outro sofrem, choram, vivem em pânico com o medo de perderem os seus filhos. Claro que haverá muitas mães orgulhosas pelos seus filhos estarem a combater, a matarem-se inimigos que se tornaram uns e outros por ódios que não entende. Mas a lembrança dele é das mães que como a sua um dia sofreu um sofrimento que só as mães conhecem com medo de perderem os seus filhos que tanto amam, quando estes são mandados para a guerra, quando não foi para isso que elas geraram e criaram os seus meninos, os seus filhos feitos homens.

No histerismo propagandista que corre por cá, quem se lembrará que na Rússia também há mães e soldados que são contra aquela invasão dum país vizinho. Mães que sofrem como todas as outras mães cujos filhos são obrigados, contrariados, a irem combater numa guerra que não é deles. Quem se lembrará delas? 

 

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