quarta-feira, 9 de março de 2022

Navega caminhando sem destino marcado. Vai na contracorrente deste modo de vida consumista sem sentido para além da ilusão do ter, do poder e do parecer, tão publicitado e incentivado pelos agentes do sistema, onde com o passar do tempo se sente mais ovelha ranhosa a cada dia, a cada acontecimento público.

Depois de renovar a assinatura do cartão-passe de transportes urbanos que o poder lhe concedeu por lhe terem roubado tempo de vida na sua juventude, decidiu apanhar o primeiro comboio que passasse em direção à cidade grande.

Diz-lhe o relógio eletrónico da estação de metro que faltam 7 minutos para o próximo transporte que o levará até à Baixa Chiado onde irá apanhar o da linha verde até ao Cais do Sodré, para subir ao cais de embarque onde tantas vezes apanhou o comboio para Caxias. Sete minutos, um tempo tão longo ou tão curto consoante os ângulos em que nos coloquemos. Sentado no banco de pedra onde tantas vezes se sentou não olha o tempo, deixa-o passar no seu constante. Só tem uma ambição, ter saúde enquanto a vida lhe permitir andar por cá. Desejos têm alguns, uns mais prementes que outros. Desejos que o ajudam a alimentar as suas energias de resistência já que gostava de viver mais uns anos, mesmo que tresmalhado do rebanho, sempre é bom andar por cá com saúde que lhe permita qualidade de vida, caso contrário não valerá a pena.

Hoje é dia 8 de Março. Diz-lhe o sistema que hoje é o dia internacional da mulher. Ele que pouco ou nada liga a essa coisa de dias internacionais, ainda comentou numa rede social a uma amiga, antiga colega de trabalho, "Que seria de nós seres humanos sem as Mulheres?". Passa a frente, nem quer pensar em quantas serão as mulheres que hoje recebem flores para amanhã receberem uma crítica perversa, um palavrão, uma proibição para não falar em outras formas de violência mais dura. Não, não celebra estes dias promulgados pela ONU.

Depois de olhar os ecrãs indicativos dos destinos dos comboios que estavam prestes a partir, decidiu regressar caminhando à beira rio até ao Terreiro do Paço para depois subir a Rua Áurea em direção à estação do metro Baixa Chiado, regressando a Santa Apolónia para voltar para casa.

Não conhecia a zona ribeirinha como ela está hoje. As obras duraram uma eternidade, muito se escreveu e criticou para agora a cidade e o rio se enamorarem naquele espaço, que convida todos, turistas, passeantes, namorados e amantes a celebrarem a vida, a paz e aquela natureza citadina. Enquanto ia registando no seu telemóvel alguns momentos fotográficos a sua sombra segredou-lhe, como é desigual este mundo de hoje, pois enquanto na desgraçada Ucrânia as mulheres fogem com as suas crianças deixando tudo para trás sem saber o que as espera no final da linha, ali nas margens do rio na cidade grande, outras mulheres iguais indiferentes às desgraças da guerra celebravam a vida, expondo-se umas aos raios solares enquanto outras trocavam beijos e olhares cúmplices entre promessas e desejos que as águas do rio ouviam sorrindo.

A Praça do Comércio ou Terreiro do Paço esta mais leve e colorida com os restaurantes e bares. Até o velhinho edifício do Ministério do Exército já tem as portas cercadas por taipais modernos de alumínio. A velha esquadra da polícia na esquina da Rua Áurea virou Pousada Lisboa do Grupo Pestana. Depois de tantos anos carregada de um ambiente austero que lhe era dado pela presença de tantos Ministérios, a Praça do Comercio ganhou vida e alegria onde até o cavalo do Rei D. José parece um pouco mais vaidoso na sua pose.

O espaço da Rua Áurea percorrido diz-lhe que os antigos edifícios que albergavam os serviços de bancos, seguradoras e companhias de navegação marítima estão a ser convertidos em Hotéis, tantos são estes que qualquer dia ainda mudam o nome à rua. Resistem algumas poucas das casas de negócio. Sorriu satisfeito quando viu que a antiga Papelaria da Moda é agora Papelaria Fernandes e que assim permaneça por muitos anos.

Desceu aos subterrâneos do metro e regressou do seu caminhar já com destino marcado.



 

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