
Não
há sofrimento ao vasculhar na memória tempos de juventude, de
sonhos e preocupações, até porque a «nossa guerra» não foi
felizmente muito traumatizante, o chamado «inimigo» andava
dividido, desorientado o MPLA com as dissidências provocadas pela
Revolta Activa, a UNITA do Savimbi vivia numa paz podre com as
«autoridades portuguesas» e a FNLA no leste não tinha influência.
Recordar
sem sofrimento. Recordar como fomos jovens e voltamos todos já
homens. Crescemos, nos fizemos homens sofrendo sim, quando por lá
andámos guerreando sempre com o medo de uma mina na picada do
Cuvelai, ou de uma emboscada ocasional, com a tensão que a PIDE-DGS
nos criava nas suas operações com os Flechas a encontrarem quase
sempre armas escondidas, quando nós não as encontrávamos em
operações nos mesmos locais, até ao dia em que dissemos ao nosso
capitão que era bom sabermos os números das mesmas armas; com o
medo e a tensão vivida nas terras do Munhango quando nos mandaram ir
atrás do «turra» Savimbi e aí sim, a guerra, a ansiedade, as
preocupações e o medo, foram vividos a cada segundo em cada minuto
daquele mês, que alguns de nós por lá vivemos. No abastecimento da
água para a base, nas operações, sentíamos sempre os «olhos do
inimigo» a vigiar os nossos passos, com a tensão a bater forte
quando atravessávamos a pé, com a água até ao pescoço dos
saldados mais pequenos, o rio Lungué-Bungo de águas correntes e
cristalinas que de tão cristalinas metiam respeito e medo aos que
não sabiam nadar. Operações houve que da ração de combate só os
sumos e a salada de fruta se puderam comer, uma vez que nem fogo
podíamos fazer para tentarmos esconder a nossa posição, valeu-nos
a mandioca e os produtos hortícolas crus que íamos encontrando nas
lavras que o pessoal controlado pelas tropas do Savimbi por lá
tinham bem amanhadas.
Vivi
a ditadura salazarista-marcelista com a bênção dos poderes
religiosos, já na oposição, fui à guerra consciente de que também
se podia combater por dentro o próprio regime decadente mas sempre
ditatorial; depois, vivi a alegria da Liberdade condicionada em
Angola não se sabendo como ia ser o futuro da região. Vi militares
de carreira passarem de defensores acérrimos de um Portugal do Minho
até Timor, a serem mais mais democratas revolucionários que o
Movimento dos Capitães, a que se diziam pertencer desde a hora
anterior à sua génese. Vi e ouvi o “pide” Jacinto com ar de
santinho dizer numa reunião na sede de Batalhão no pós 25 de
Abril, que eles pides sempre souberam que na companhia do Mumbué
havia “comunistas”, dizia-o olhando para mim, e que eles nunca
tinham mal tratado ninguém (eles que alguns meses antes tinham
furado os ouvidos com paus incandescentes a um guerrilheiro do MPLA
que os Dragões de Silva Porto tinham capturado numa operação em
que lhes dei apoio logístico no Chinhondze). Santinhos aquelas duas
personagens da Catota. Nomeado como o oficial da companhia para
acompanhar os guerrilheiros da UNITA, agora em acção psicológica
pelos quimbos da nossa zona, vi a alegria das populações quando
lhes apresentava o Capitão da UNITA . Populações onde o soba
apenas nos tinha respeito, talvez por medo da tropa, dizia agora
nessas acções, às suas gentes para oferecerem também à tropa,
uma cabeça de gado e foi assim que quando abandonei o Mumbué ainda
lá deixei perto de 20 cabritos.
Agora,
irei comprar o livro sobre a “Descolonização” de um militar de
carreira e do Movimento dos Capitães quando no pós 25 de Abril em
Silva Porto, os militares que comandavam o sector nos deram ordem de prisão quando integrando uma comissão
ad hoc quisemos evitar a saída do batalhão de Chitembo para Maquela
do Zombo, sem êxito, diga-se.
Na
guerra aprendemos a ter como amante a nossa G3, deram-ma no Grafanil
e no final da comissão foi lá que a deixei. Uma amante fiel que
nunca reclamava, nem chorou quando a deixei. Até à pouco tempo
ainda me lembrava do numero que ela tinha. Era uma amante que dormia
sempre connosco, sempre pronta a defendermos-nos. Em comparação com
a famosa kalashnikov russa, disseram-me os entendidos dos Dragões de
Silva Porto (homens de cavalaria que faziam as suas operações
militares montados em cavalos puro sangue sul-africano), que embora
mais pesada, a nossa G3 era mais certeira a 200 metros, causava mais
estragos no desgraçado que fosse atingido por um tiro de G3 do que
de uma kalashnikov. Nunca experimentei e assim não sei se era
verdade ou não. Apenas numa emboscada que a UNITA nos montou, dei
uso no teatro das operações à minha G3. Nessa emboscada depois do
«inimigo» ter fugido, não ficamos lá todos ou muitos, porque
fomos protegidos por uma estrela celeste salvadora. O “fdp” do
Savimbi nunca foi capturado, mas à boa maneira dos ditadores quando
estava sem alternativas de fuga, aproveitou o 25 de Abril e voltou a
negociar um acordo de paz com as autoridades portuguesas em Angola.
Reconheço
sem problema, que dos três movimentos que em Angola nos faziam
«guerra de guerrilha», nutria alguma simpatia pelo MPLA. A figura
de Agostinho Neto impunha-se à de Savimbi ou à de Holden Roberto.
Mais um equivoco que a história se encarregou de me demonstrar que
estava errado. Nenhum dos três após os acordos de Alvor com as
autoridades portuguesas se preocupou com o bem estar e o
desenvolvimento do povo angolano, antes só procuraram impor os seus
interesses de poder ditatorial, com o MPLA a dominar e a exercer sobre
todos os que se desviassem da sua linha de pensamento os métodos
mais duros das policias secretas ditatoriais. Por onde andará o
antigo cabo estrábico Vieira Dias?
Não
há pois tristeza ou sofrimento doentio, neste recordar de
experiências por vezes com medo, outras mais ou menos doridas e
vividas. Apenas o recordar como felizmente os tempos mudaram e os
jovens que hoje partem para missões militares no estrangeiro
fazem-no não porque são obrigados mas porque se oferecem para tais
operações, vão ao que sabem e porque nelas desejam participar.
Não
é por ter passado o que passei, por ter vivido o que vivi e não ter
vivido o viver dos meus sonhos de jovem, que sinto tristeza, ou
revolta. A vida é uma função de experiências cumulativas, umas
melhores, outras piores.
Uma
coisa é certa, mais “chicalhão”, mais “controlador”, mais
“baldas”, sempre procurei defender o meu grupo, nem sempre da
forma mais correcta, cumprindo sempre no limite mínimo as obrigações
que me foram confiadas. Dentro dessa certeza estão os laços de
amizade e de respeito com todo o pessoal do Batalhão em geral, mas
de uma forma mais especial com os jovens, os homens, os grisalhos de
hoje da 2ª C. Caç. 5010. Há laços que nasceram sem darmos por
isso e que se tornaram tão fortes que não há política ou futebol
que os vença.
Outra
coisa é certa mas mais difícil de entender, de explicar até, é o
sentimento de nostalgia, de amor mesmo, aquela terra onde andámos na
guerra mas que deixou esta sempre vontade de um dia lá poder voltar
e ir ver e sentir as populações por onde andámos. Uma terra tão
abençoada, tão grande e onde tantos continuam a viver à margem dos
limites da dignidade humana.
Um
Natal de 2017 com saúde e boa disposição para todos os antigos
combatentes do Batalhão de Caçadores 5010/72.
O
mesmo, ou seja, “Um Natal de 2017 com Saúde e Boa Disposição”,
para todos os amigos que fui criando ao longo da vida, quer andem por
estas auto-estradas, quer vivam fora delas!
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