segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

 

Não há sofrimento ao vasculhar na memória tempos de juventude, de sonhos e preocupações, até porque a «nossa guerra» não foi felizmente muito traumatizante, o chamado «inimigo» andava dividido, desorientado o MPLA com as dissidências provocadas pela Revolta Activa, a UNITA do Savimbi vivia numa paz podre com as «autoridades portuguesas» e a FNLA no leste não tinha influência.
Recordar sem sofrimento. Recordar como fomos jovens e voltamos todos já homens. Crescemos, nos fizemos homens sofrendo sim, quando por lá andámos guerreando sempre com o medo de uma mina na picada do Cuvelai, ou de uma emboscada ocasional, com a tensão que a PIDE-DGS nos criava nas suas operações com os Flechas a encontrarem quase sempre armas escondidas, quando nós não as encontrávamos em operações nos mesmos locais, até ao dia em que dissemos ao nosso capitão que era bom sabermos os números das mesmas armas; com o medo e a tensão vivida nas terras do Munhango quando nos mandaram ir atrás do «turra» Savimbi e aí sim, a guerra, a ansiedade, as preocupações e o medo, foram vividos a cada segundo em cada minuto daquele mês, que alguns de nós por lá vivemos. No abastecimento da água para a base, nas operações, sentíamos sempre os «olhos do inimigo» a vigiar os nossos passos, com a tensão a bater forte quando atravessávamos a pé, com a água até ao pescoço dos saldados mais pequenos, o rio Lungué-Bungo de águas correntes e cristalinas que de tão cristalinas metiam respeito e medo aos que não sabiam nadar. Operações houve que da ração de combate só os sumos e a salada de fruta se puderam comer, uma vez que nem fogo podíamos fazer para tentarmos esconder a nossa posição, valeu-nos a mandioca e os produtos hortícolas crus que íamos encontrando nas lavras que o pessoal controlado pelas tropas do Savimbi por lá tinham bem amanhadas.
Vivi a ditadura salazarista-marcelista com a bênção dos poderes religiosos, já na oposição, fui à guerra consciente de que também se podia combater por dentro o próprio regime decadente mas sempre ditatorial; depois, vivi a alegria da Liberdade condicionada em Angola não se sabendo como ia ser o futuro da região. Vi militares de carreira passarem de defensores acérrimos de um Portugal do Minho até Timor, a serem mais mais democratas revolucionários que o Movimento dos Capitães, a que se diziam pertencer desde a hora anterior à sua génese. Vi e ouvi o “pide” Jacinto com ar de santinho dizer numa reunião na sede de Batalhão no pós 25 de Abril, que eles pides sempre souberam que na companhia do Mumbué havia “comunistas”, dizia-o olhando para mim, e que eles nunca tinham mal tratado ninguém (eles que alguns meses antes tinham furado os ouvidos com paus incandescentes a um guerrilheiro do MPLA que os Dragões de Silva Porto tinham capturado numa operação em que lhes dei apoio logístico no Chinhondze). Santinhos aquelas duas personagens da Catota. Nomeado como o oficial da companhia para acompanhar os guerrilheiros da UNITA, agora em acção psicológica pelos quimbos da nossa zona, vi a alegria das populações quando lhes apresentava o Capitão da UNITA . Populações onde o soba apenas nos tinha respeito, talvez por medo da tropa, dizia agora nessas acções, às suas gentes para oferecerem também à tropa, uma cabeça de gado e foi assim que quando abandonei o Mumbué ainda lá deixei perto de 20 cabritos.
Agora, irei comprar o livro sobre a “Descolonização” de um militar de carreira e do Movimento dos Capitães quando no pós 25 de Abril em Silva Porto, os militares que comandavam o sector nos deram ordem de prisão quando integrando uma comissão ad hoc quisemos evitar a saída do batalhão de Chitembo para Maquela do Zombo, sem êxito, diga-se.
Na guerra aprendemos a ter como amante a nossa G3, deram-ma no Grafanil e no final da comissão foi lá que a deixei. Uma amante fiel que nunca reclamava, nem chorou quando a deixei. Até à pouco tempo ainda me lembrava do numero que ela tinha. Era uma amante que dormia sempre connosco, sempre pronta a defendermos-nos. Em comparação com a famosa kalashnikov russa, disseram-me os entendidos dos Dragões de Silva Porto (homens de cavalaria que faziam as suas operações militares montados em cavalos puro sangue sul-africano), que embora mais pesada, a nossa G3 era mais certeira a 200 metros, causava mais estragos no desgraçado que fosse atingido por um tiro de G3 do que de uma kalashnikov. Nunca experimentei e assim não sei se era verdade ou não. Apenas numa emboscada que a UNITA nos montou, dei uso no teatro das operações à minha G3. Nessa emboscada depois do «inimigo» ter fugido, não ficamos lá todos ou muitos, porque fomos protegidos por uma estrela celeste salvadora. O “fdp” do Savimbi nunca foi capturado, mas à boa maneira dos ditadores quando estava sem alternativas de fuga, aproveitou o 25 de Abril e voltou a negociar um acordo de paz com as autoridades portuguesas em Angola.
Reconheço sem problema, que dos três movimentos que em Angola nos faziam «guerra de guerrilha», nutria alguma simpatia pelo MPLA. A figura de Agostinho Neto impunha-se à de Savimbi ou à de Holden Roberto. Mais um equivoco que a história se encarregou de me demonstrar que estava errado. Nenhum dos três após os acordos de Alvor com as autoridades portuguesas se preocupou com o bem estar e o desenvolvimento do povo angolano, antes só procuraram impor os seus interesses de poder ditatorial, com o MPLA a dominar e a exercer sobre todos os que se desviassem da sua linha de pensamento os métodos mais duros das policias secretas ditatoriais. Por onde andará o antigo cabo estrábico Vieira Dias?
Não há pois tristeza ou sofrimento doentio, neste recordar de experiências por vezes com medo, outras mais ou menos doridas e vividas. Apenas o recordar como felizmente os tempos mudaram e os jovens que hoje partem para missões militares no estrangeiro fazem-no não porque são obrigados mas porque se oferecem para tais operações, vão ao que sabem e porque nelas desejam  participar.
Não é por ter passado o que passei, por ter vivido o que vivi e não ter vivido o viver dos meus sonhos de jovem, que sinto tristeza, ou revolta. A vida é uma função de experiências cumulativas, umas melhores, outras piores.
Uma coisa é certa, mais “chicalhão”, mais “controlador”, mais “baldas”, sempre procurei defender o meu grupo, nem sempre da forma mais correcta, cumprindo sempre no limite mínimo as obrigações que me foram confiadas. Dentro dessa certeza estão os laços de amizade e de respeito com todo o pessoal do Batalhão em geral, mas de uma forma mais especial com os jovens, os homens, os grisalhos de hoje da 2ª C. Caç. 5010. Há laços que nasceram sem darmos por isso e que se tornaram tão fortes que não há política ou futebol que os vença.
Outra coisa é certa mas mais difícil de entender, de explicar até, é o sentimento de nostalgia, de amor mesmo, aquela terra onde andámos na guerra mas que deixou esta sempre vontade de um dia lá poder voltar e ir ver e sentir as populações por onde andámos. Uma terra tão abençoada, tão grande e onde tantos continuam a viver à margem dos limites da dignidade humana.
Um Natal de 2017 com saúde e boa disposição para todos os antigos combatentes do Batalhão de Caçadores 5010/72.
O mesmo, ou seja, “Um Natal de 2017 com Saúde e Boa Disposição”, para todos os amigos que fui criando ao longo da vida, quer andem por estas auto-estradas, quer vivam fora delas!

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