domingo, 19 de abril de 2020

Trigésimo segundo dia do resto das nossas vidas


Domingo, trigésimo segundo dia desta vida em quase clausura. O quase justifica-se pelas saídas curtas mas diárias com a minha amiga. O silêncio que domina vai levando ideias, pensamentos, roubando sonhos, desfazendo planos, como que adiando a própria vida.
Um silêncio assustador porque também o vírus inimigo é silencioso demais no seu contágio, criando em nós um estado de alerta constante e desgastante onde os tiques que o receio nos impôs, são capazes de ficar connosco muito mais tempo do que agora imaginamos. Com luvas ou sem elas o agarrar nas chaves de casa imaginando que o vírus poderá estar nelas, o acender a luz das escadas com o cotovelo para não utilizar o elevador que pode ser chamado com a ponta da chave, com ela procurar abrir a porta até o pé fazer o resto, a porta da rua agora um perigo onde todo o cuidado é pouco para abri-la sem lhe tocar, a ponta do sapato sempre pronta para facilitar a abertura, o andarmos não só com os óculos pendurados mas também com a tal mascara social não nos vamos esquecer dela quando vamos ao supermercado, o afastarmos-nos dos poucos cidadãos que podem vir na nossa direcção quando já não nos lembramos dos anos em que nos conhecemos, nos cruzávamos nas mesmas ruas, nos mesmos passeio e nos cumprimentávamos. A pouco e pouco vamos entrando no mundo dos zumbis. 
Que fazer para fugir a todo este estado de coisas onde até as conversas com os familiares e amigos parecem já não ter mais assunto que as conversas gastas dos dias anteriores, onde por mais que queiramos evitar acabamos sempre a falar das consequências que o vírus já está a causar às nossas vidas. Há sempre um familiar ou amigo que está em casa em "lay off simplificado", ou simplesmente desempregado, alguém que já não acredita no futuro, que vive revoltado com tudo e com todos, sem que alguém nos possa indicar qual será o melhor caminho. O futuro é hoje mais incerto do que sempre foi. Navegamos, andamos, voamos na escuridão querendo acreditar que ao fundo do túnel existe uma luz que resiste. Contudo, ao olharmos constatamos que a luz ao fundo do túnel ainda não se acendeu.
Hoje, influenciado pela reportagem que ontem à noite vi no Porto Canal me fez pensar enquanto caminhava nos da frente de combate que trabalham na segunda linha recebendo e tratando doentes que à partida não serão doentes infectados mas que pelas características do vírus podem estar. A angústia. O medo da dúvida. O stress constante da dúvida misturando com o profissionalismo e humanismo daqueles profissionais de saúde que por motivos de idade foram colocados nessa tal segunda linha de combate a todas as outras doenças ditas normais que todos os dias ceifam vidas anónimas superiores às mortes que o vírus provoca ou antecipa, mas que não têm nunca tiveram direito a tempo de antena. Doenças normais em doentes normais, muitos deles conhecidos mas que podem transportar cumulativamente o vírus silencioso, criando um desgaste enorme naqueles profissionais de saúde que não olham a meios para salvarem todos os doentes que se lhes apresentam, sem se deixarem infectar. Fiquei a pensar neles e foi preciso chegar a um canal televisivo regional para ver e ouvir sem me zangar uma reportagem séria sem se falar em número de mortes, em queixas de falta disto e daquilo, antes enaltecendo o trabalho que foi feito por todos de todas equipas daquele grande hospital do SNS, o S. João.
Depois, desliguei dos canais onde se passeiam os papagaios acompanhados de especialistas que tudo sabem de  tudo. Fui ver e rever de novo “Dança com Lobos”.

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