segunda-feira, 6 de abril de 2020

Décimo nono dia do resto das nossas vidas


No dia em que fiz 22 anos cheguei ao Mumbué no chamado Leste de Angola. Os senhores da guerra ensinaram-me, armaram-me de G3 e puseram sob as minhas ordens cerca de 30 jovens como eu, diferença de meses tínhamos uns dos outros. Alguns nem a barba ainda precisavam de fazer tão novinhos e tenrinhos eram. O medo de morrermos jovens era transversal a todos os que andávamos por lá, sem que muitos dos que tinham a G3 nos braços soubessem as causas concretas de ali estarem. O meu medo era ainda maior porque a juntar ao medo de morrer jovem naquela guerra absurda, acrescentava o medo de algum daqueles jovens sob o meu comando poder morrer. Um medo maior que me atormentava pelo desconhecimento da reação que tal fatalidade a acontecer iria provocar na minha consciência política de oposicionista ao sistema. Palmilhámos quilómetros sem conta de mata, trilhos e picadas. Conhecemos a guerra, a sede, a fome e o pão que o diabo amassou. No fim em consequência do 25 de Abril pudemos voltar todos para o colo de nossas mães, esposas, namoradas, família e amigos uns dias antes de completarmos os 24 meses de asilo forçado entre o arame farpado e a mata que parecia não ter fim. E, assim deixei o medo ficar na mata que parecia não ter fim.
Ao voltarmos quase incrédulos de que o sofrimento tinha acabado, a guerra surda e muda veio connosco, também ela procurando fugir às injustiças dos humanos senhores da guerra.
Partimos de noite quase às escondidas para regressarmos ao local de partida ao final da tarde de um final de Novembro cinzento sem chuva. Cada um seguiu o seu caminho de vida, deixando para trás irrecuperável o tempo de vida que os senhores da guerra nos roubaram. Quis o destino que a passagem definitiva à peluda, assim se chamava a Liberdade de voltarmos a ser totalmente civis, com algumas nuances, acontecesse no dia 22 celebrando de novo os meus 22 anos já que os outros dois me foram roubados e como tal não deveriam constar do meu actual cartão de cidadão. Mas constam, que o tempo é uma variável constante implacável.

Neste tempo de isolamento social em nossas casa, ao conversar telefonicamente com alguns amigos, companheiros, camaradas desse tempo que a guerra nos roubou de vida, nos obrigaram ao isolamento forçado entre o arame farpado e a mata que parecia não ter fim, sempre comentamos o tempo de agora e o sentir da angustia de tantos e tantas de gerações mais novas ou mesmo dos da nossa geração que felizmente não conheceram o isolamento do arame farpado numa terra distante e tão diferente daquela onde nascemos e ganhamos raízes. A mim custa-me compreender o problema da angustia que muitos apresentam por terem de ficar em casa, podendo sair à rua o estritamente necessário. Dizem até alguns especialistas que depois desta batalha ser ganha iremos ter a pandemia das depressões psíquicas. Acredito que possa acontecer.

Nós, eu os meus amigos e muitos outros, que sofremos aquele tempo em que os minutos demoravam horas e o passar das horas pareciam dias, onde as poucas mordomias se podiam contar pelos dedos de uma mão e ainda sobravam dedos, aceitamos este tempo de agora sem angustia, serenamente. Eram mordomias naquele tempo de arame farpado, os célebres aerogramas azuis ou amarelos que chegavam dos pais, das esposas, das namoradas, de familiares ou simples madrinhas de guerra, uma ou outra encomenda de um queijo ou de um chouriço, um maço de tabaco do “Puto”, um leitão ou um cabrito comprados à força aos populares sob a nossa protecção para a celebração de um aniversário, ou o poder ir uma vez por outra à cidade comer um bife de carne e passar pela pastelaria mais fina para comer com os olhos as moças e mulheres bonitas que por lá paravam, quase todas brancas de pele. Hoje, por força do vírus estamos todos obrigados é certo a ficar nas nossas casas podendo ter acesso a quase tudo. Não nos faltam mordomias. As paredes da casa são apenas e só uma barreira de betão que não nos impedem de andarmos a navegar pela net, de pedirmos para nos levarem a casa a comidinha feita, de assistirmos à televisão, a séries e filmes, de falarmos e vermos por videoconferência nossos familiares e amigos etc etc.

Nós os velhos, de 69 e mais anos que vivemos a guerra nas frentes de África, aceitamos este isolamento forçado com outra disposição, sem ansiedades nem situações de stress. Somos velhos, antigos combatentes ossos duros de roer a todos aqueles que pensam que não temos os mesmos direitos que as suas gerações mais novas. Gerações que se esquecem facilmente que muito daquilo que felizmente têm e podem usufruir nas suas vidas aos mais velhos o devem.

Meu pai dizia-me muita vez a rir, «morrer por morrer que mora o meu pai que é mais velho», mas tudo tem o seu tempo e o seu lugar, sabendo nós que o tempo não pára, a “pdi” é tramada, mas vamos todos ficar sossegados em casa, que o sofrimento assim como o mostrengo da morte em nenhuma casa em nenhum lar são desejados.

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