
No
dia em que fiz 22 anos cheguei ao Mumbué no chamado Leste de Angola.
Os senhores da guerra ensinaram-me, armaram-me de G3 e puseram sob as
minhas ordens cerca de 30 jovens como eu, diferença de meses
tínhamos uns dos outros. Alguns
nem a barba ainda precisavam de fazer tão novinhos e tenrinhos eram.
O medo de morrermos jovens era transversal a todos os que andávamos
por lá, sem que muitos dos que tinham a G3 nos braços soubessem as
causas concretas de ali estarem. O meu medo era ainda maior porque a
juntar ao medo de morrer jovem naquela guerra absurda, acrescentava o
medo de algum daqueles jovens sob o meu comando poder morrer. Um medo
maior que me atormentava pelo desconhecimento da reação que tal
fatalidade a
acontecer
iria provocar na minha consciência política de oposicionista ao
sistema. Palmilhámos
quilómetros sem
conta
de mata, trilhos e picadas. Conhecemos a
guerra,
a sede, a fome e o pão que o diabo amassou. No fim em consequência
do 25 de Abril pudemos
voltar
todos para o colo de nossas mães, esposas, namoradas, família e
amigos uns dias antes de completarmos os 24 meses de asilo forçado
entre o arame farpado e a mata que
parecia não ter fim.
E,
assim deixei o medo
ficar
lá
na
mata que parecia não ter fim.
Ao
voltarmos quase incrédulos de que o sofrimento tinha acabado, a
guerra surda e muda veio connosco, também ela procurando fugir às
injustiças dos humanos senhores da guerra.
Partimos
de noite quase às escondidas para regressarmos ao local de partida
ao final da tarde de um final de Novembro cinzento sem chuva. Cada um
seguiu o seu caminho de vida, deixando para trás irrecuperável o
tempo de vida que os senhores da guerra nos roubaram. Quis o destino
que a passagem definitiva à peluda, assim se chamava a Liberdade de
voltarmos a ser totalmente civis, com algumas nuances, acontecesse no
dia 22 celebrando de novo os meus 22 anos já que os outros dois me
foram roubados e como tal não deveriam constar do meu actual cartão
de cidadão. Mas
constam, que o tempo é uma variável constante implacável.
Neste
tempo de isolamento social em nossas casa, ao
conversar telefonicamente
com
alguns amigos, companheiros,
camaradas desse
tempo que a
guerra
nos roubou
de
vida,
nos obrigaram ao isolamento forçado entre o arame farpado e a mata
que parecia não ter fim, sempre
comentamos o tempo de agora
e
o sentir
da
angustia
de
tantos e tantas
de
gerações mais
novas
ou mesmo dos da nossa geração que felizmente não conheceram o
isolamento do arame farpado numa terra distante e tão diferente
daquela
onde nascemos e ganhamos raízes. A
mim
custa-me compreender o problema da angustia que
muitos apresentam por
terem de ficar em casa, podendo sair à rua o estritamente
necessário.
Dizem
até alguns especialistas que depois desta batalha ser ganha iremos
ter a pandemia das depressões psíquicas. Acredito
que possa acontecer.
Nós,
eu os meus amigos e
muitos outros,
que sofremos aquele tempo
em que os
minutos demoravam horas e o
passar das horas pareciam
dias, onde
as poucas mordomias se podiam contar pelos dedos de uma mão e ainda
sobravam dedos, aceitamos
este tempo de agora sem angustia, serenamente.
Eram
mordomias naquele
tempo de arame farpado, os
célebres aerogramas azuis ou amarelos que chegavam dos pais, das
esposas, das namoradas, de familiares ou simples madrinhas de guerra,
uma ou outra encomenda de um queijo ou de um chouriço, um maço de
tabaco do “Puto”, um
leitão ou um cabrito comprados à força aos populares sob a nossa
protecção para a celebração de um aniversário,
ou o poder ir uma vez por outra à cidade comer um bife de carne e
passar pela pastelaria mais fina para comer com os olhos as moças e
mulheres bonitas que por lá paravam, quase todas brancas de pele.
Hoje,
por força do vírus estamos todos obrigados é
certo
a ficar nas nossas casas podendo ter acesso a quase tudo. Não
nos faltam mordomias.
As paredes da casa são apenas e só uma barreira de betão que não
nos impedem
de andarmos
a navegar
pela net, de pedirmos para nos levarem a casa a comidinha feita, de
assistirmos à televisão, a
séries e filmes,
de falarmos e vermos por videoconferência nossos familiares e amigos
etc
etc.
Nós
os velhos, de 69 e mais anos que vivemos a guerra nas frentes de
África, aceitamos este isolamento forçado com outra disposição,
sem ansiedades nem situações de stress. Somos velhos, antigos
combatentes ossos duros de roer a todos aqueles que pensam que não
temos os mesmos direitos que as suas
gerações
mais novas. Gerações
que
se esquecem facilmente
que muito daquilo que felizmente têm e
podem usufruir
nas suas vidas aos mais velhos o devem.
Meu
pai dizia-me
muita
vez a
rir,
«morrer por morrer que
mora
o meu
pai que é mais velho», mas tudo tem o seu tempo e o seu lugar,
sabendo nós que o tempo não pára, a “pdi” é tramada, mas
vamos todos ficar sossegados em casa, que o sofrimento
assim como o mostrengo
da morte em nenhuma casa em
nenhum lar são
desejados.
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