segunda-feira, 20 de abril de 2020

Trigésimo terceiro dia do resto das nossas vidas


O silêncio igual ao de todas as manhãs. Quando a segunda feira é igual ao domingo e este igual a todos os outros, tudo o que nos rodeia vai ficando mais pesado num silêncio que faz doer os próprios ouvidos, começando a duvidar se tudo não passa de um pesadelo.
Talvez se conseguisse dormir mais umas horas o silêncio pudesse ser diferente. O hábito de acordar cedo vem de longe começando lá longe em outras terras de outros gentios onde aprendi a acordar à hora certa mesmo sem relógio para despertar. Hoje como então não olho ao calendário. Há mesma hora, mais minuto menos minuto o corpo dá sinal. Se optar por voltar a deitar ou ficar mais tempo, o lugar sagrado do descanso perde sabor porque o corpo como que começa a doer incomodado sem posição.
A manhã deste trigésimo terceiro dia começou como a noite de ontem acabou. O telefonema de um amigo que no outro tempo desta vida foi o capitão da minha companhia informou-me que o Reinaldo Barbosa Miranda, soldado 09488572 também conhecido pela alcunha de “Peru” tinha falecido. Mais um do meu grupo, que um dia foi jovem e soldado primeiro em Chaves a receber a instrução de caçador depois a acompanhar-me nas aventuras e dificuldades por terras de Angola. Um jovem que cimentou a minha revolta contra o sistema ditatorial de cunhas e favores que reinava em nome de uma moral putrefacta. O jovem Miranda, minhoto de nascença, era bom rapaz, cumpridor que não levantava ou criava outros problemas que não fossem a sua inaptidão para as coisas da ordem militar e da guerra. Estávamos nós em Viana do Castelo a aguardar a ordem de embarque, quando as altas patentes nos puseram a limpar as ervas daninhas no Forte de Santiago da Barra. Nesse limpar das ervas calhou-nos o limpar dos muros da entrada do Forte, quando o amigo Miranda é visto pelo cabo-miliciano com a cabeça no muro. Ao questioná-lo sobre o que estava a fazer naquela posição, o amigo Miranda respondeu: - Estava a ver se a minha cabeça cabia no buraco. Quando em operações no mato o quarto de sentinela lhe cabia a ele era certo que se deixava dormir sem acordar o soldado seguinte, pelo que passou a não ser escalado ou a ser o ultimo e mesmo assim se deixava dormir. Era um perigo ao limpar a arma. Felizmente limpava-a sempre na vertical virada para o céu pois raras foram as vezes em que não se esquecia de retirar a bala da câmara e lá saia mais um tiro para o ar. De resto não levantava qualquer problema. Tinha um irmão mais novo a estudar para padre que ele cuidava e educava com o pré miserável que como soldado recebia e conseguia fazer chegar ao irmão.
Passado muitos anos após a passagem à “peluda” a primeira vez que fui a uma almoço da CCS e da 2ª Companhia veio logo ter comigo a perguntar-me se eu o conhecia. Olhei, olhei e não o reconheci até que ele me diz: - Sou o Miranda, o “Peru”. Depois soube que andava com problemas na próstata e as coisas não lhe corriam bem. Ainda lhe telefonei quando passámos a reunirmos em Coimbra ao que ele me disse que não podia, não tinha condições, a sua moto não dava para chegar tão longe.
Acabou-se. Mais um. E já são uma mão cheia os jovens tão jovens quanto eu que me aturaram e foram fieis que a pouco e pouco vamos terminando esta viagem.
Apetece-me gritar bem alto contra as injustiças dos homens. 
Reclamar ao Deus todo poderoso? já desisti! porque nunca me respondeu às conversas que lhe fiz.
Que descanses em Paz! Soldado 09488572 Reinaldo Barbosa Miranda!

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.