sexta-feira, 10 de abril de 2020

Vigésimo terceiro dia do resto das nossas vidas


O acordar igual aos dias anteriores. A manta amiga nas pernas. O casaco vestido por cima do pijama. Atrás de mim a janela da pequena varanda quase virada a norte. Lá fora o escuro é interrompido por um ou outro carro que passa na E. N. 10. Estranho. Embora seja feriado há mesmo assim quem ainda trabalhe e como tal se tenha de deslocar para concelhos vizinhos. Quando sair lá pelas sete vou ver em que direcção circulam.
Dizem que os velhos são os mais teimosos em quererem andar na rua. Talvez sejam. O sentir que a vida está na fase final impele-os a darem o seu passeio para desentorpecer as pernas já que o corpo vai perdendo agilidade. Quem sabe se os carros que estranhamente vão passando não são de velhos que teimam em ir passar a Páscoa à santa terrinha. Velhos que aprenderam na guerra de África que os golpes de mão ao inimigo se deveriam executar ao nascer do dia. Quer os polícias, quer os guardas que durante este tempo de emergência vemo-los e sabemos que controlam os pontos estratégicos nas grandes cidades, também eles precisam de descansar, podendo a vigilância ser menor durante a madrugada. Aqui estou eu a supor coisas que não sei, podendo estar a dizer pequenas parvoíces e pouco mais.

Continuo neste vigésimo terceiro dia a ver pouco a televisão. Só às refeições e chega para ficar pelos cabelos em pé ao ouvir o que se passa com o vírus covid-19 e, com aquilo que os chefes ocultos mandam dizer aos pivôs. Quase que nem a rádio já ouço. Ouvir música, ler e o escrever estas parvoíces que escrevo no telemóvel para depois as enviar para o meu email, emendar erros e guardar no meu blog, minha caixa de recordações, desabafos, imagens do estado de espírito. O telefonar a familiares e amigos. Assim é o meu passar dos dias a que me habituei há muito. Os erros que cometemos na vida cá se pagam, por isso vivo estes dias em casa sem ansiedade. A casa sempre é um refúgio. Deixei para trás as saudades do futuro, não deixando de pensar na minha casinha do interior, meu centro espiritual de descanso onde tudo para mim é mais leve. Aqui nas margens da cidade grande é certo que saio à rua pelo menos duas vezes por dia para dar o passeio com a minha amiga Sacha, uma vez por outra vou ao supermercado e também já passei uma hora e um quarto na fila da farmácia para comprar os comprimidos que a médica de família me prescreveu por causa da pressão arterial. A mínima tem a mania de querer subir quando deixo de tomar os tais comprimidos, sempre na esperança que o ritmo possa voltar ao que era antes de ter ficado desempregado, de ter cometido as asneiras em negócios onde me meti ingénuo. Lá me convenci que é melhor tomar estas pequenas drogas químicas do que arriscar a ter um treco ficando dependente a dar trabalho aos outros por culpa do meu pensar.

Há tantas formas dissimuladas de vivermos nesta sociedade de consumo desenfreada, que vivemos presos pensando que somos livres. A falsa ideia de liberdade em que muitos viviam sem se aperceberem está a leva-los, neste tempo de emergência, a uma ansiedade da ilusão que os apoquenta com alguns a quererem romper o que as autoridades decidiram, «ficarmos em casa».
O relógio de pulso já deu sinal. Faltam 15 minutos para as sete. Vou-me vestir para ir dar o passeio matinal não esquecendo nunca a comida do amigo Lorde. Depois…

Bem depois que chegamos à rua verifiquei que a esmagadora maioria dos veículos que transitavam na E. N. 10 faziam-no em direcção à cidade grande. Pelo certo a caminho dos seus trabalhos.

Hoje pareceu-me ouvir que no que respeita ao refuncionamento das escolas prevaleceu o bom senso. Ainda não chegou o momento de se decidir pela reabertura das mesmas.

A minha preocupação continua. Quando é que poderei viajar até à minha casinha? Será que também eu vou ter que desobedecer ao estabelecido pelas autoridades?



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