segunda-feira, 20 de março de 2023

10.02.23

São 20H0. Já jantou, já foi para dentro de casa. A Sacha já está na cama dela. Impera o silêncio do tic tac do relógio. A salamandra já aqueceu a casa e aqui na divisão onde a tem está calor. Dizem que a lenha de eucalipto ainda dá mais calor mas só usa lenha de azinho. No passado inverno comprou uma tonelada ao António. Começou a utilizar essa lenha ontem. Antes, ainda queimava a lenha de há dois anos. No próximo mês quando voltar talvez ligue de novo ao António para lhe fornecer mais uma tonelada, é que está tudo a aumentar de uma forma preocupante. 

Os vizinhos espanhóis queixam-se dos aumentos que estão a suportar no gás canalizado e na eletricidade, sendo que esta teve um incremento de 76%. Até o combustível agora em Espanha está mais caro do que em alguns postos de abastecimento em Portugal. Assim, como só tem uma bilha de gás vazia não foi nem irá à Zarza La Mayor, aguarda que outra esteja vazia para compensar lá ir buscar duas botijas de gás butano.

Os olhos começam a pesar. O tic tac do relógio como que o embala. Está cansado. Andou todo o dia a trabalhar no quintal podando a figueira para os ramos não subirem tanto dificultando depois a apanha dos figos, varrendo o quintal, preparando os dois talhões de terreno para depois de almoço lavra-los com a moto-enxada elétrica, endireitando-a com o ancinho, para no final da tarde preparar a salamandra para esta noite aquecer a casa. Os olhos pesam, as artroses dos dedos das mãos doem-lhe por não estarem habituados a estes trabalhos, e, já nem teve força para ir varrer de novo o quintal que ao lavrar se sujou com a terra que sempre salpica para fora dos limites.

Não tem mãos para continuar a escrever à mão no caderno, fá-lo no telemóvel para amanhã de manhã continuar e quando se encaminha para o quarto pergunta-se a si próprio, porque aos 72 anos andar nestes trabalhos? Porque não é ele como muitos outros citadinos reformados? Que necessidade tem de castigar o corpo desta forma? Sem respostas deita-se na esperança que amanhã será outro dia, satisfeito por o malvado pingo não ter dado sinal nestes dias de intenso trabalho corporal para a sua idade.

Já passam das 6H00 do dia 11.02.23.

Ao acordar pensa que não podia recordar o seu pai se não tivesse feito o que fez às oliveiras do Chão da Horta. Nem todas sofreram o corte profundo, lembrando o que o amigo Zé lhe disse. Gosta de saber as coisas deste campo assim como tem de aprender a conhecer as qualidades das oliveiras quando elas não têm o fruto, a azeitona, porque essas já as conhece. Se tiver saúde no final do ano, irá plantar lá no Chão umas oliveiras para substituir as que morreram ou estão sem saúde quase mortas.

No quintal não arrancou a romãzeira, deixou-a ficar dando-lhe também uma poda grande, a ver se o ditado dos antigos funciona como funcionou no limoeiro e laranjeira que afinal tem o tronco mãe de limoeiro enxertado em três qualidades de laranja.

Amanhã irá voltar para Alverca. Como hábito dos últimos anos, já sente vontade de voltar ao seu canto e ainda não partiu, só amanhã de manhã o irá fazer. A vida das cidades já pouco ou nada lhe diz. As cidades tornaram-se impessoais, uma selva irracional onde o egoísmo foi deitado à terra e floresceu em betão e em Homo Sapiens correndo em busca de posição social agredindo-se uns aos outros, tudo bem orquestrado por agentes televisivos propagandistas encapotados vestidos como gente de bem, servis de falso humanismo. Por isso mesmo no seu pequeno canto os dois aparelhos de televisão pouco uso lhes dá, sentindo-se melhor ao não tomar conhecimento da ação psicológica que os servos dos patrões conversos difundem.

Não foi este mundo que sonhou quando em erupção a abandonou sem lhe dar uma explicação das razões dos porque de tal atitude. Ainda hoje está convencido que ela não o iria acompanhar na revolta contra a sociedade que brotou nele naquele tempo amordaçado pela ditadura salazarista em união com o clero retrógrado de um cardeal saudoso dos tempos proibidos pelo grande Marquês de Pombal. Os dois velhos tiranos amordaçaram o país numa miséria temente sem respeito pelo ser que pensasse e sonhasse diferente. Ele integrou esse exército de revoltados sonhadores, continuando após tantas desilusões a sonhar com um modo de vida diferente e muito mais decente do que o desta pobre e ultrajada democracia. 

Prepara-se que são quase 7H00. Vai buscar pão fresco à padaria para amanhã levar. Vai mas não vai sozinho, com ele seguem lembranças que cultiva na sua vida simples de solitário no meio dos outros.


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