sábado, 11 de março de 2023

22.12.12

Ao sair com a Sacha para a rua os olhos voltaram a encherem-se, ameaçando deixarem rolar lágrimas. Aguentou-se. A ventania de um vento não frio fez-lhe bem. Ao andar indiferente à ventania recordou acontecimentos que mostram que nem tudo nem todos na vida são interesseiros e ou egoístas.

Eram jovens militares aguardando ordens para embarcar para o Leste de Angola, segundo lhes comunicou o Comandante de Batalhão. Estavam estacionados naquele Forte à beira do Rio Lima, desde finais de Setembro princípio de Outubro. Como naquele tempo havia que ter sempre em ação os operacionais coube ao seu pelotão a tarefa de limpar as ervas no caminho exterior de acesso ao portão do Forte que servia de Porta de Armas. Destacados os soldados para a limpeza das ervas foi o Aguiar (futuro furriel) encontrar o Miranda que em vez de limpar as ervas procurava meter a cabeça nos buracos do muro que ladeavam o caminho. Quando questionado sobre o que estava a fazer, o soldado Miranda respondeu educadamente que estava a ver se a sua cabeça cabia nos buracos, os outros ao ouvirem todos se riram. O soldado Miranda foi dos poucos a quem tinham dado instrução de atirador de infantaria em Chaves, que foram mobilizados para a sua companhia e integrados no seu grupo. Já em Chaves se notava que era um soldado com algumas características pouco fora do comum, mas os senhores da guerra precisavam de todos os filhos do povo anónimo, para que os seus meninos prodígios pudessem ser poupados a tal sacrifício.

Quando no Forte de Santiago da Barra, foram os futuros alferes instigados pelo Segundo Comandante te Batalhão a conhecerem a massa humana sob a sua responsabilidade, ficou a conhecer que no seu grupo havia um soldado registado como filho de «mãe incógnita», que já havia quem tivesse mulher gravida, embora a maioria fosse solteira, todos tinham frequentado a escola primária, mas a maioria tinha dificuldades em ler e ainda mais em escrever. Nesses números de solteiros estava o soldado Miranda a quem os companheiros tinham posto a alcunha de “Peru” já que ele imitava muitas vezes o glu glu dos perus. Ele tinha um irmão mais novo de quem era de certo modo tutor. O soldado Miranda passou a ser conhecido e tratado como o Peru. Era um jovem um pouco diferente, sempre obediente mas por vezes faltava-lhe qualquer coisa.

Chegaram ao Mumbué no dia 22 de Dezembro mas só quando a Companhia que foram render os deixou é que começaram a sair em operações, umas de ação psicológica junto das populações dos “quimbos” da área de ação da Companhia, outras de três dias com incursões em zonas de mato a controlar e outras de cinco dias em zonas mais afastadas do quartel que chegavam aos quase 200km. Poucos eram os dias em que os grupos operacionais estavam aquartelados no arame farpado. Nesses poucos dia o amigo Miranda ao limpar a sua G3 descuidava-se e lá saía um tiro para o ar. Da primeira vez que tal se verificou o pessoal de imediato reagiu pensando tratar-se de um ataque inimigo, até que alguém gritou que tinha sido o Peru que se descuidou e deu o tiro. Foi a primeira mas não foi a última que o soldado Miranda ao limpar a G3, por esquecimento ou engano voltava a dar um tiro. Felizmente foram todos para o céu. O Peru era gozado pelos outros soldados, mas ele limitava-se a sorrir e vivia na sua. Como estava integrado numa equipa de caçadores alinhava nas operações do grupo de combate, nunca se recusando a sair para qualquer operação. Mas, quando nas operações de três e cinco dias chegada a noite e lhe cabia fazer o seu “quarto sentinela”, o soldado Peru deixava-se dormir e já não acordava o companheiro seguinte, deixando o grupo entregue à sorte. No início aceitava os raspanetes e os castigos sem reclamar encolhendo os ombros e por vezes sorrindo, até que foi poupado de fazer esses “quartos de sentinela” noturnos com a anuência dos outros companheiros que perceberam a decisão, embora nunca tenha deixado de sair em operações a partir do quartel ou das bases táticas em que participaram.

O soldado Miranda era diferente, mesmo quando o pessoal tinha uns dias sem operações e alguns saiam para dar uma volta pelos quimbos que ficavam juntos ao Mumbué, ele normalmente ficava, não saía. Não fumava. Não bebia. Não se metia com ninguém nem arranjava problemas com os companheiros de caserna. Não gastava um escudo angolar, pois que todo o miserável pré que recebia era para guardar e mandar para o irmão poder estudar.

Acabado o fadário da guerra cada um seguiu o seu rumo de vida. Ele não queria ouvir falar do tempo de tropa, tinha fechado a sete chaves esse tempo de vida bem no fundo do seu inconsciente.

Como a vida é feita de etapas, estando tudo sempre em evolução pelo que tudo cambia tudo muda, e, como “pela boca morre o peixe”, também o antigo alferes “Peniche” como era conhecido, um dia já neste século encontrou pela internete um amigo de quem não se lembrava bem. Através desse amigo foi sabendo de outros, Ao procurar saber de alguns levou vários murros no estômago quando lhe diziam que esse já tinha falecido; soldados fieis do seu grupo para quem a vida foi curta e muito madrasta.

Quando compareceu no primeiro almoço que o pessoal da CCS organizava perto de Vila Nova de Gaia, o antigo soldado Mirando foi o primeiro a reconhece-lo num abraço sentido. Continuava no mesmo jeito de há muitos anos.

Quando o pessoal da sua Companhia lhe pediu para organizar almoços a meio caminho entre o Porto e Lisboa, nos telefonemas que fez a todos os antigos elementos da Companhia, ao falar com o amigo Miranda, este disse-lhe que não podia comparecer porque era muito longe para se deslocar na sua pequena e velha mota. A vida continuava-lhe difícil e não podia comparecer nos almoços que ainda fizeram antes da pandemia na cidade de Coimbra. Quando correu a notícia errada de que o amigo Miranda teria falecido, sentiu uma tristeza diferente da tristeza normal pois a mesma era misturada de uma certa dose de revolta contra este mundo. Felizmente logo depois chegou a notícia que tinha sido engano e o amigo Miranda continuava vivo. Não sabia dele mas estava vivo.

De novo nos contactos que fez para confirmar o almoço de Viana do Castelo comemorativo dos 50 anos, primeiro o Malheiro e depois o Manhete lhe confirmaram que já tinham contactado o Miranda e que este se mostrou contente e interessado em comparecer, ficou contente. O Miranda lá estava à espera deles. Durante o almoço o Miranda contou-lhe que teve um desastre na sua mota e que ficou uma semana em coma no hospital mas que felizmente recuperou, mas agora apareceu-lhe uma sombra na vista que esta quase cega aguardando que o chamem para ser operado à vista. Que a sorte te proteja amigo Miranda e que a sombra seja apenas catarata e nada mais, pensou para si ao ouvi-lo como sempre o conheceu desde a instrução em Chaves.

Quando com o Malheiro fizeram a receção do pagamento do almoço, esteve para lhe pagar o almoço, mas não o fez com medo de o melindrar. O amigo Miranda quando cumpriu com o pagamento entregou-lhe um papelinho que depois viu tratar-se da sua morada. Esta manhã quando se lembrou do amigo e os olhos se encheram de lágrimas, porque também ele sabe o que é ter um irmão que para lá de irmão é um ser especial, a sua sombra segredou-lhe: - tens a morada, envia-lhe as Boas Festas de Natal. Assim irá cumprir o concelho da sua própria sombra.

 

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