sexta-feira, 10 de março de 2023

22.12.02

 

Entrou na época do ano em que mais se sente sozinho, não compreendendo a azáfama dos outros com as celebrações de Natal seguindo-se passagem de ano que para si não passa de uma simples mudança de calendário.

O seu Natal já não existe, perdeu-se no tempo. Já não é possível ajudar os pais a fazer os alguidares de coscorões, que para a sua mãe já inválida mas orientando e mandando sempre foram filhoses, que depois geria, tantas para um filho, tantas para o outro filho, outras tantas para primos, vizinhos e mais umas para a vizinha que está de luto. Há muito que esse Natal simples cheio de magia feito na cozinha à lareira passou a existir apenas nas lembranças que o tempo guarda. Não havia músicas natalícias modernas. No ar a voz de sua mãe acompanhada pelo pai, filhos e também netas entoavam os cânticos que eles tinham aprendido dos seus pais e avós, cantigas de Natal ao Menino Jesus da Beira Baixa raiana.

Já há uns anos que não segue nenhum rito religioso dos vários que existem na sociedade atual. Foi católico praticante de missa e terço, até ao momento em que dentro da própria igreja católica apostólica romana olhou o Mundo apercebendo-se das injustiças e desigualdades reinantes, saindo como entrou no seu passo. A vida é feita de etapas, podendo-se sempre aprender alguma coisa com as experiências vividas. Perdeu nesse tempo em que a revolta brotou em si o respeito pelas religiões.

Mantém o seu presépio todo o ano, porque o mesmo significa para si o renascer da compreensão da fraternidade e solidariedade humana entre todos. No seu Natal não há esse símbolo do poder consumista que é a figura mercantil de um tal Pai Natal que nada de bom trouxe à humanidade a não ser umas histórias imaginárias para fomentar o consumismo.

A 24 de Dezembro de 1971, ofereceu-se a si próprio um pequeno livro de poesia, comprado na Livrelco a Entrecampos, onde vários poetas deixaram o seu sentir sobre o Natal acompanhando fotos do grande fotógrafo Eduardo Gageiro. Um livrinho maldito para o sistema reinante de pensamento único num «orgulhosamente sós» que nos trazia acorrentados para que não abríssemos a mente ao mundo novo que se anunciava no horizonte e que um dia irá chegar para que o Natal não seja apenas uma data litúrgica, um acontecimento consumista de desperdícios vários. Quando esse dia do novo mundo chegar a frase de que "Natal é quando um Homem quiser", deixará de ter sentido, porque nesse tempo de um mundo novo "Natal serão todos os dias" .

Releio sempre nesta época o prefácio desse meu livrinho que me acompanhou sempre, mesmo quando nas vésperas do Natal de 1972, os senhores que nos governavam com mão de ferro em brasa, indiferentes ao sofrimento dos seus cidadãos, nos embarcaram num avião para irmos para a guerra combater na defesa dos interesses da meia dúzia de famílias suas amigas que com a ajuda do Clero católico ortodoxo os abençoavam, indiferentes ao sofrimento de mães, pais, esposas e demais familiares.

Diz Felicidade Alves (que foi padre católico) no prefácio deste meu pequeno missal subversivo:

«Não nasceu ele, Jesus, nas mansões abastadas de Jerusalém, de Jericó ou dos arrabaldes elegantes da capital. Nem sequer nasceu na humilde casinha os barraca onde dormiam seus pais. Eram emigrantes. As vicissitudes da política imperial forçaram aquele casal a deslocar-se. E foi como que num bidonville que os braços de Maria acolheram o menino e o envolveram em paninhos, colocando-o sobre as palhas da mangedoira dum curral de gado, ali em Belém de Judá. É que não havia lugar para eles nos albergues ou motéis da vila.

A contrastar com tão insignificante fenómeno, indiferenciado ou até menos dramático, do que o de milhares de outros nascimentos de então e de agora, e de sempre, a consciência cristã viu ali um mistério latente: o estilo inconfundível e programático de Deus-connosco. Os pastores das redondezas são alertados; os sábios que investigam os sinais do cosmo pressentem que o universo está a sofrer um singular estremeção. Acorrem uns e outros, oferecendo cada qual o seu género de presentes. E atribui-se à intervenção de misteriosos seres cantares de júbilo, em que se definia o manifesto da mensagem nova, resumida nesta legenda:

Glória a Deus em sua transcendência. E Paz na terra aos homens, pois Deus a todos quer bem.”

Aqui se revela a Esperança e a Aurora dum Mundo Novo. Os primeiros cristãos acreditavam que tudo iria ser transformado. A Paz e a Justiça, a Liberdade e o Amor, a Fraternidade e a Igualdade, a Partilha e a Comunhão – numa palavra, o estilo de Jesus, arauto da maneira divinamente revolucionária de conceber a realeza de Deus, à margem dos cultos sacrais, faria novas todas as coisas!

Assim disse a fé dos cristãos das origens. Passam os séculos. Os actuais discípulos de Jesus, corporativamente observados, já não são uma comunidade de irmãos que semeia a Esperança e constrói um mundo-outro: são uma poderosa organização religiosa, tecnicamente bem apetrechada com os mais eficazes meios de dominação, que o Poder, o Ter, o Saber lhe conferem. São uma alavanca do mundo, tal como Jesus o veio contestar. O cristianismo instalou-se. E agora é o cristianismo instalado – a que também se dá o epíteto de «Civilização cristã ocidental» - que não consente espaço para a Esperança dos Homens e que produz os Herodes que matam os meninos suspeitos de inquietar os grandes nos seus tronos.

A celebração do Natal não é já um sinal prenhe de esperança de libertação, passou a ser um fenómeno cultural, retrogrado e anti-evangélico, ambíguo e incoerente, é um acto religioso no detestável sentido reacionário da palavra , incapaz de sacudir coisa alguma, sem encerrar fermentos revolucionários. Não é Deus-connosco: por isso não resolve nem contesta o reinado dos não-Deus-connosco. É qualquer coisa que desmente e blasfema a BOA-NOVA de há dois mil anos.

E é por isso que novos mensageiros da BOA-NOVA proclamam, a quantos mantêm a expectativa dos tempos prometidos, que não aceitem esta mentira dum Natal que não é o de Jesus de Nazaré, porque não responde à Esperança de ninguém e insulta a boa-fé de todos.

Talvez estes gritos de desespero ou de raiva, de denúncia e inconformação, tornem possível, no nascimento de outros «meninos-de-nada», a leitura dos sinais precursores de que o Mundo vai ser sacudido e será mudado de raiz.

E o mundo do trabalho (pastores) e da investigação (cientistas) terão de procurar por outras rotas a quem irão oferecer as suas prendas.» (FELICIDADE ALVES em 1971)

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