segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

10.07.23



 

Olhei as fotos da guerra. Fechei os olhos e vi-me na chegada ao Mumbué, na alegria louca dos militares que fomos substituir. Ao receio e medo nos olhos e semblante dos "maçaricos" que acabávamos de chegar idos de terras distantes sobreponha-se a alegria louca dos "velhinhos" que viam chegar ao fim o tempo que os senhores da guerra lhes tinham imposto como comissão.

Ia apanhar um pouco de sol nas rochas quando vi que à minha frente caminhava o meu amigo Hermano com a sua mulher Teresinha. Somos do mesmo ano, sendo o Hermano de Setembro e eu de Dezembro. Estava eu no quartel em Chaves de frente para os homens que iam integrar o meu grupo de combate, quando todos os soldados e cabos milicianos ficaram em suspenso muito admirados por um soldado desconhecido deles, chegar por trás e me ter dado um valente caldaço no pescoço. Ao voltar-me surpreendido vi à minha frente a rir-se o meu amigo Hermano do Lugar da Estrada, também mobilizado para incorporar o Batalhão que se acabava de formar, integrando como mecânico a Primeira Companhia enquanto eu pertencia à Segunda Companhia. Para maior admiração dos meus subordinados soldados e cabos milicianos nos abraçamos como amigos pois a amizade era superior às graduações militares.

Quando por várias vezes, não muitas, nos encontrávamos na cidade de Silva Porto, nas deslocações que as companhias do Batalhão ali faziam para reabastecimento de víveres frescos e recolha de correspondência, sempre preferi almoçar com o meu amigo do que com os outros oficiais e sargentos, porque antes de seremos militares de diferentes graduações, eram seres humanos amigos desde que a minha família tinha ido viver para o Lugar da Estrada. Também o nosso tempo de guerra chegou um dia ao fim e ambos regressamos às nossas casas, para cada um de nós seguir o seu caminho familiar e profissional, que a guerra não deixou saudades.

Tivemos sortes de guerra diferentes pelas funções que a cada um coube desempenhar, sendo que como em tudo na vida é preciso um pouco de sorte, todos os militares do serviço militar obrigatório que integraram o Batalhão nas diversas companhias, acabaram por conhecer essa mesma sorte ao serem destacadas para aquela zona de intervenção operacional, porque naquele tempo os guerrilheiros do MPLA andavam dispersos, pelas profundas divisões internas que existiam na Frente Leste sediada na Zâmbia, e o outro movimento independentista a UNITA existente na zona operacional de ação vivia tempos de acalmia em que as nossas tropas não atuavam para lá dos limites que as cartas topográficas marcavam com um risco amarelo, nem eles procuravam fazer incursões ou ações na nossa área. Daí o podermos dizer que tivemos sorte na guerra.

Só quando da passagem de ano de 1973 para 1974 a UNITA voltou às suas ações de atacar destacamentos militares e populações, as operações dos grupos operacionais tomaram outro sentido, com os altos comandos militares da região a desencadearem uma forte ofensiva em busca do líder Savimbi. O Batalhão participou nessa ofensiva militar com uma super companhia constituída por quatro grupos de combate completos, dois da segunda e dois da terceira aos quais se juntaram dois grupos de GE's, um do Mumbué e outro do Mutumbo, sendo a super companhia comandada pelo capitão da terceira companhia. No mês em que andei na base tática longe da zona de ação do Batalhão tão longe que saímos de comboio da cidade de Silva Porto no final da tarde para chegarmos ao Munhango no outro dia de manhã sendo de imediato transportados em viaturas militares do Batalhão de Cavalaria ali instalado para chegarmos à base tática no final desse dia, coube-me fazer a última operação de cinco dias das várias que os grupos de combate realizamos nesse longínquo mês para nessa última intervenção conhecer o que era cair numa emboscada.

Já sabia que o capitão mandava um homem de sua confiança verificar se os três grupos de combate que eu comandava (por o grupo da terceira companhia que atuava junto ter o seu alferes de férias), passávamos o Rio Lungué-Bungo, pois ao passarmos o mesmo entravamos em zona de contacto iminente com as forças da UNITA. Recordo as dificuldades para passarmos o rio, que apresentava um caudal de águas cristalinas mas de meter respeito com alguns dos meus homens de baixa compleição física que não sabiam nadar apresentarem receio natural ao atravessarmos para a outra margem; caminhávamos já há mais de duas horas em fila, quando me chegou a informação de que lá atrás se recusavam a continuarem a andar por cansaço. Eu seguia na frente da coluna tendo apenas à minha frente o guia e o soldado "Vila Real". Dei ordem para estacionarem e desloquei-me até ao local dos insubordinados que se recusavam a andar encontrando o soldado "Amendoim" sentado no trilho, argumentando que queria descansar. Dei-lhe ordem para se levantar e caminhar, continuando o "Amendoim" sentado coloquei-lhe a minha bota nas costas por altura do pescoço pressionando até a cara do soldado encontrar o chão arenoso, de imediato outros soldados me apontaram a G3. Olhei-os nos olhos dei-lhes ordem para começarem a andar virando de imediato as costas fui ocupar o meu lugar na cabeça da coluna. Já a noite se anunciava quando o guia lá encontrou um rio perto onde pudemos abastecer os cantis secos de água. Não permiti que fizessem lume para aquecer as intragáveis rações de combate, assim como o fumar também estava proibido. Acampámos em linha e não no tradicional círculo. Com dois sentinelas permanentes e não apenas um. Ao romper do novo dia, os sentinelas acordam o pessoal. Não muito longe batiam o pilão. Dei ordem para que o grupo de GE's ficasse a guardar as mochilas do pessoal e parti com os restantes homens só com as G3 e munições. O guia seguia à frente, a poucos passos seguia o "Vila Real" e logo atrás ia eu com todos a guardarmos a distância aconselhada. O pilão ia diminuindo de intensidade à medida que nos aproximávamos, deixando não só de se ouvir como até o chilrear das muitas aves se tinham calado quando o guia para e com os olhos pergunta-me qual dos trilhos fresquíssimos devíamos seguir, na mesma linguagem respondi-lhe em boa hora para seguir pelo trilho da direita. O silêncio dominava a floresta quando constatámos que o outro trilho dava para um acampamento, avançávamos lentamente quando os guerrilheiros da UNITA começam a disparar sobre nós. Foi curta a duração do tiroteio pois que os guerrilheiros assim que ouviram o rebentamento do morteiro 60 seguido do diagrama desataram a fugir. Quando os soldados se aperceberam da fuga desataram a correr de imediato em direção ao aldeamento, arrombando as portas das cubatas previamente abandonadas quando presumivelmente sentiram a nossa presença na zona no dia anterior. O bater do pilão tinha sido o chamariz para os atrair na esperança que tivéssemos ido pelo trilho da esquerda em vez do da direita. Arrombadas as cubatas bastou um soldado ter incendiado o colmo de uma que logo todas foram incendiadas. Quando uns metros mais à frente demos com o aldeamento dos guerrilheiros foi de igual modo incendiado. Regressamos para junto dos GE's a fim de comermos a ração do pequeno almoço, o mata bicho, comunicando via rádio com a base, aguardando ordens pois já estávamos referenciados na zona. Ao verificar com o guia as coordenadas indicadas como novo objetivo, vi na sua cara uma mistura de admiração e receio. As coordenadas indicadas como nova zona coincidiam com o local onde na semana anterior tropas especiais tinham sido rechaçadas pelos guerrilheiros da UNITA. Terminado o pequeno almoço de novo com o saco mochila às costas começámos a andar subindo a um morro de onde avistava o quase infinito das copas das árvores daquelas florestas. Já que éramos tropa normal e não especial por ali ficámos o resto do dia.

Ainda não há muito tempo num almoço familiar com primos, quando a guerra no leste europeu veio à conversa, disse-lhes que em qualquer guerra, de guerrilha, clássica ou como a atual lá Leste europeu, há em todas as guerras três princípios fundamentais, o primeiro é ter de matar o outro antes que o outro me mate; o segundo é que ao ouvir o segundo tiro ou rebentamento nunca se pode estar no mesmo local e posição em que se ouviu o primeiro e, um terceiro princípio que diz que temos de fazer tudo e o impossível para regressarmos da guerra custe o que custar, em seguida questionei se um grupo de combate que sofre uma emboscada rechaçando o inimigo e depois lhe incendeia todos os aldeamentos que encontra, se esses homens foram ou são criminosos de guerra? por fim ainda disse que nenhum deles sabia o que um homem com uma arma numa guerra era capaz de fazer, porque a guerra transforma o ser humano numa máquina capaz de tudo fazer para poder sobreviver à própria guerra, que numa guerra não há essa treta de direitos humanos, a guerra transforma-nos em maus e do pior; não acredito em uma sequer das notícias que um lado e outro difundem e publicam. Na guerra, seja ela qual for, o primeiro desertor, muito antes de ser disparado o primeiro tiro, é a própria Verdade!

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